Em 2013, Lady Gaga dava início à fase mais conturbada de sua carreira com o lançamento do subestimado ‘ARTPOP’. À época, Gaga havia sido massacrada pelo especialistas e pelo público, ambos redescobrindo a potência revolucionária do álbum em questão quase uma década depois. Entretanto, ainda que ‘ARTPOP’ agora seja tratado como uma espécie de clássico cult em virtude de sua importância para o cenário da música eletrônica, Gaga resolveu mudar totalmente sua imagética para reencontrar a si mesma e explorar cantos do show business que jamais imaginou que exploraria.
Um ano mais tarde, a lendária musicista se reuniria com Tony Bennett para a elogiada colaboração ‘Cheek to Cheek’, demonstrando sua afeição com o gênero jazz e conquistando, inclusive, uma estatueta do Grammy Awards. Em 2016, sua fase clean ganharia um novo capítulo à medida que ela se aventurava no country e no rock (já tendo desfrutado de um gostinho dos dois gêneros alguns anos anteriores) e adotava uma persona reservada, intimista e introvertida, traduzindo toda a dor que vinha sentido em belíssimas composições que se consagrariam no compilado ‘Joanne’. Apesar de conquistar o primeiro lugar da Billboard 200 e garantir críticas solidamente positivas, boa parte dos fãs não se identificou com o que Gaga estava trazendo para sua carreira, enquanto algumas pessoas caracterizam a nova era como um “fracasso”.
Goste ou não, ‘Joanne’, assim como todas as outras incursões da Mother Monster, foi um divisor de águas em sua carreira. Afinal, ela nunca havia mergulhado tão fundo em temas pessoais – nas inflexões anteriores, a temática principal girava em torno da fama, do medo, da criatividade e do sexo, mas nunca sobre as próprias dores. De um lado, temos declarações saudosistas que ganham forma na potente “Million Reasons”, na faixa-titular (uma das mais emocionantes de sua discografia) e em “Grigio Girls”; de outro, o sofrimento romântico de “Perfect Illusion” e do country-rock de “John Wayne”; e, por fim, temos o conhecido abraço das críticas sociais em “Angel Down” e “Hey Girl”. Interpolando-as, outras tracks subestimadas que, pouco a pouco, foram conquistando o coração do público e provaram que Gaga é uma das artistas mais multifacetadas de todos os tempos e sabe o que está fazendo em cada um dos álbuns.
Enquanto alguns comentam sobre a falta de coesão da obra (um argumento insosso, visto que ele não se sustenta), ela funciona, em sua completude, como um arauto da performer para si mesma, para começar a compreender o que ela sente em relação ao que é, ao que representa para seus milhões de fãs e ao que tem o potencial de ser. “Diamond Heart” é acompanhada do verso “posso não ser perfeita, mas você sabe que eu tenho um coração de diamante”, revertendo a autossabotagem que vinha sentindo (e que seria explorada em ‘Chromatica’, quatro anos depois) em uma propriocepção apaixonante; “Dancin’ in Circles” parte do mesmo princípio, pincelado por vocais irretocáveis e a compreensão otimista de que é uma mulher completa e pode viver como bem entender.
Não é surpresa que, assim como as produções anteriores, ‘Joanne’ tenha um impacto significativo na indústria da música – e que é diminuído por pessoas que, de fato, não tem um pingo de conhecimento. A icônica Kylie Minogue, pouco depois do lançamento do álbum de Gaga, aproveitou para deixar as raízes do dance-pop e do electro-pop em prol de uma configuração mais delicada e relacionável – dando vida ao também subestimado ‘Golden’ e a faixas como “Dancing” e “Stop Me From Falling” em 2018; Harry Styles, que se tornou um monstro dos streamings e das vendas, aproveitou a ressurgência do glam-rock no cenário mainstream para dar vida à seu début solo, “Sign of the Times”; Miley Cyrus também se desvencilhou de uma personalidade mais rebelde para uma comedida incursão com ‘Younger Now’; e Kesha, para o álbum ‘Rainbow’, abriu espaço para discussões importantes sobre seus sentimentos e seguiu os passos de sua conterrânea para um lugar mais confessional e pessoal (uma mudança que começou a tomar forma logo assim que Gaga resolveu remar contra a maré).
A segunda metade dos anos 2010 foi fortemente marcada pela música trap, pelo R&B e pelo bubblegum pop, como visto com artistas como Beyoncé, Ariana Grande, Fifth Harmony e tantos outros nomes expoentes do escopo fonográfico da época. Isso acarretava grandes produções sonoras, instrumentalizações épicas e um diálogo constante entre vocais e progressão. Contrariando o que ditavam as regras, Gaga resolveu colocar sua voz em primeiro plano, aproveitando os elementos que tinha (e um time competente de produtores e liricistas) para construir um corpo musical mais minimalista, sem a explosão eletrônica de ‘Born This Way’ e sem os sintetizadores artísticos de ‘The Fame Monster’. É por esse motivo que a estética limpa nos chama a atenção, considerando que as distorções são mínimas e que a linha entre o estúdio e as performances ao vivo se diluí como forma de provar a autenticidade da cantora.
‘Joanne’ deu início a uma tendência que permitiria os fãs verem que seus ídolos eram de verdade, em uma nua e crua construção que se afastava dos arquétipos intocáveis perpetuados pela indústria do entretenimento e descontruía a imagem divina que tínhamos dele. O álbum permitiu que Gaga errasse e se levantasse, inspirando diversas celebridades a fazerem o mesmo – e esse é um legado que não pertence a quase mais ninguém.