domingo , 22 dezembro , 2024

Artigo | ‘O Homem que Inventou o Natal’ é uma apaixonante obra que honra o legado de Charles Dickens

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Charles Dickens é um dos nomes mais conhecidos da literatura mundial. O romancista inglês tornou-se responsável por arquitetar narrativas extremamente envolventes e que, além de se desenrolarem de modo fluido e muito conciso, representam uma enorme crítica à sociedade de meados do século XIX que estava pautada em um individualismo exacerbado pós-Revolução Industrial. De certo, analisar suas obras apenas com um olhar periférico é cair em um dos erros mais imperdoáveis da crítica – a perspectiva superficial -, visto que faz-se necessário inclusive conhecer o background do próprio autor para poder compreender cada um dos cosmos que cria com maestria – como Oliver Twist’, O Mistério de Edwin Drood’ e, obviamente, a soberba atmosfera natalina de Um Conto de Natal’.

Girando em torno do amargurado empresário Ebezener Scrooge, tal trama traz, como já é de se esperar do panteão dickensiano, inúmeras alfinetadas em uma parcela da população que é movida apenas pela ambição e pelo lucro. Tendo sido adaptada para inúmeras investidas cinematográficas e televisivas – incluindo uma assustadora e convincente releitura animada pelos estúdios Disney -, pouco se sabe, entretanto, acerca do que realmente moveu o novelista a criar uma de suas obras-primas e como ele chegou a tamanha perfeição literária. E levando em conta que a produção de inusitadas biopics parece ter ganhado o coração da indústria hollywoodiana, não foi uma grande surpresa que a vida de Dickens tenha sido levada para os cinemas na divertidíssima e comovente O Homem que Inventou o Natal.



Primeiramente, grande parte do público atual parece ter uma afeição além do normal por narrativas de época – e qualquer coisa que seja ambientada na Londres vitoriana é, de fato, chamativo, incluindo seus cenários clássicos e a inebriante ambiência de dúvida e caos que se mescla a uma perspectiva utópica e inalcançável de esperança. Aqui, temos o incrível carisma de Dan Stevens encarnando o protagonista, resgatando alguns trejeitos exagerados que podem ou não serem reais, mas que certamente adicionam algumas camadas de quebra de expectativa para algo que poderia se render ao drama excessivo. Dickens vive com sua esposa e com seus três filhos em um enorme casarão, e está lidando com o iminente sucesso de seu último livro, Oliver Twist’, a qual não foi recebida com entusiasmo o suficiente pela crítica especializada, mas foi abraçada pelas massas como um discurso acerca da camada menos favorecida. 

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Já no começo do primeiro ato, percebemos o principal obstáculo a ser enfrentado pelo protagonista: ele próprio. Tudo bem, é claro que ele também tem que lidar com a pressão de seus editores por uma nova obra e com a crescente defasagem monetária pela qual passam, implicando em uma exponencial decadência de status que conversa tanto com sua conturbada infância quanto com a insurgência de Scrooge; entretanto, aqui estamos focados em como todo esse determinismo se traduz em um bloqueio criativo doloroso e que basicamente evoca inúmeros fantasmas de seu passado, incluindo o do pai John (Jonathan Pryce). 

O mote que move o escopo geral é o dinheiro e como suas múltiplas faces impactam, direta ou indiretamente, na vida de todos ao seu redor. Charles tornou-se órfão após presenciar a prisão de sua família por questões financeiras e orquestradas por um grupo de enfurecidos agiotas; isso o levou a trabalhar em uma fábrica de sapatos em ruínas, no qual tudo o que conhecia virou pó e passou a ser tratado como um forasteiro e um pária. Em outras palavras, ele foi obrigado a amadurecer contra sua vontade, e só depois de conseguir escapar desse sombrio cárcere, veio a se transformar no ilustre escritor; mesmo assim, ele também acabou cedendo aos luxos do dinheiro e gradativamente tornou-se uma pessoa também amargurada, cujos gatilhos são ativados diversas vezes ao longo da trama. 

Talvez essa seja o principal fator que permitiu ao protagonista desenvolver uma trama que se passasse em um dos feriados mais festivos do ano, o Natal, brincando com os paradoxais conceitos de “solidariedade” e “egoísmo” ao buscar inspiração em sua vivência – incluindo o macabro encontro com um misterioso homem em um cemitério londrino que eventualmente serviu como escopo para a existência de Ebezener. É claro que nada disso seria possível sem o consistente roteiro assinado por Susan Coyle: resgatando os principais temas explorados na biografia homônima de Lee Standiford, Coyle transforma uma análise verídica em uma explanação lúdica e fantasiosa sobre a criação do romance em questão, permitindo-se realizar até mesmo uma releitura do próprio conto ao colocar as várias facetas de Dickens em um mesmo cosmos. 

Christopher Plummer é o nome que rouba a cena, mais uma vez. Encarnando o anti-herói de Um Conto de Natal’, sua caracterização não se restringe apenas ao aplaudível trabalho da maquiagem e dos efeitos especiais, mas também alastra-se para seus trejeitos vocais e corporais. Diferentemente de outras investidas para adaptar a narrativa escrita, este talvez seja a mais coerente releitura de Scrooge, afastando-se de quaisquer estereótipos para uma subjetividade arquetípica e complexa que humaniza uma das figuras mais desprezíveis da literatura inglesa. Isso permanece desde sua primeira aparição até os momentos finais – que por um lado deixam a desejar pelo excesso de felicidade e pela premeditada conclusão fabulesca do “e todos viveram felizes para sempre”. 

De qualquer modo, o diretor Bharat Nalluri não deixa que essa divertida história discorra em vão, e utiliza-se de suas habilidades para dialogar com a fluidez narrativa: as construções imagéticas prezam por planos-sequência muito bem estruturados e o uso de contra-plongées que brinquem com a ideia de superioridade e inferioridade, seja socioeconômica, seja psicológica, ainda que, algumas vezes, permaneça na zona de conforto da comum montagem de ação-e-reação. Nalluri trabalha com maestria com a fotografia burlesca e expressionista de Ben Smithard, o qual usa e abusa de recursos estilísticos como o contraste entre branco e preto e o excesso de uma duvidosa névoa – mesmo que sofre algumas influências de um infeliz pedantismo identitário. 

O Homem que Inventou o Natal é uma caprichosa e tragicômica visão acerca da vida e obra de Charles Dickens. Mesmo com seus aparentes erros, é impossível não se encantar com as minúcias de seus incríveis visuais e não se envolver com atuações convincentes de um elenco on point. Podemos não ter exatamente uma rendição que honre por completo uma obra tão atemporal – mas definitivamente estamos no caminho certo. 

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Charles Dickens é um dos nomes mais conhecidos da literatura mundial. O romancista inglês tornou-se responsável por arquitetar narrativas extremamente envolventes e que, além de se desenrolarem de modo fluido e muito conciso, representam uma enorme crítica à sociedade de meados do século XIX que estava pautada em um individualismo exacerbado pós-Revolução Industrial. De certo, analisar suas obras apenas com um olhar periférico é cair em um dos erros mais imperdoáveis da crítica – a perspectiva superficial -, visto que faz-se necessário inclusive conhecer o background do próprio autor para poder compreender cada um dos cosmos que cria com maestria – como Oliver Twist’, O Mistério de Edwin Drood’ e, obviamente, a soberba atmosfera natalina de Um Conto de Natal’.

Girando em torno do amargurado empresário Ebezener Scrooge, tal trama traz, como já é de se esperar do panteão dickensiano, inúmeras alfinetadas em uma parcela da população que é movida apenas pela ambição e pelo lucro. Tendo sido adaptada para inúmeras investidas cinematográficas e televisivas – incluindo uma assustadora e convincente releitura animada pelos estúdios Disney -, pouco se sabe, entretanto, acerca do que realmente moveu o novelista a criar uma de suas obras-primas e como ele chegou a tamanha perfeição literária. E levando em conta que a produção de inusitadas biopics parece ter ganhado o coração da indústria hollywoodiana, não foi uma grande surpresa que a vida de Dickens tenha sido levada para os cinemas na divertidíssima e comovente O Homem que Inventou o Natal.

Primeiramente, grande parte do público atual parece ter uma afeição além do normal por narrativas de época – e qualquer coisa que seja ambientada na Londres vitoriana é, de fato, chamativo, incluindo seus cenários clássicos e a inebriante ambiência de dúvida e caos que se mescla a uma perspectiva utópica e inalcançável de esperança. Aqui, temos o incrível carisma de Dan Stevens encarnando o protagonista, resgatando alguns trejeitos exagerados que podem ou não serem reais, mas que certamente adicionam algumas camadas de quebra de expectativa para algo que poderia se render ao drama excessivo. Dickens vive com sua esposa e com seus três filhos em um enorme casarão, e está lidando com o iminente sucesso de seu último livro, Oliver Twist’, a qual não foi recebida com entusiasmo o suficiente pela crítica especializada, mas foi abraçada pelas massas como um discurso acerca da camada menos favorecida. 

Já no começo do primeiro ato, percebemos o principal obstáculo a ser enfrentado pelo protagonista: ele próprio. Tudo bem, é claro que ele também tem que lidar com a pressão de seus editores por uma nova obra e com a crescente defasagem monetária pela qual passam, implicando em uma exponencial decadência de status que conversa tanto com sua conturbada infância quanto com a insurgência de Scrooge; entretanto, aqui estamos focados em como todo esse determinismo se traduz em um bloqueio criativo doloroso e que basicamente evoca inúmeros fantasmas de seu passado, incluindo o do pai John (Jonathan Pryce). 

O mote que move o escopo geral é o dinheiro e como suas múltiplas faces impactam, direta ou indiretamente, na vida de todos ao seu redor. Charles tornou-se órfão após presenciar a prisão de sua família por questões financeiras e orquestradas por um grupo de enfurecidos agiotas; isso o levou a trabalhar em uma fábrica de sapatos em ruínas, no qual tudo o que conhecia virou pó e passou a ser tratado como um forasteiro e um pária. Em outras palavras, ele foi obrigado a amadurecer contra sua vontade, e só depois de conseguir escapar desse sombrio cárcere, veio a se transformar no ilustre escritor; mesmo assim, ele também acabou cedendo aos luxos do dinheiro e gradativamente tornou-se uma pessoa também amargurada, cujos gatilhos são ativados diversas vezes ao longo da trama. 

Talvez essa seja o principal fator que permitiu ao protagonista desenvolver uma trama que se passasse em um dos feriados mais festivos do ano, o Natal, brincando com os paradoxais conceitos de “solidariedade” e “egoísmo” ao buscar inspiração em sua vivência – incluindo o macabro encontro com um misterioso homem em um cemitério londrino que eventualmente serviu como escopo para a existência de Ebezener. É claro que nada disso seria possível sem o consistente roteiro assinado por Susan Coyle: resgatando os principais temas explorados na biografia homônima de Lee Standiford, Coyle transforma uma análise verídica em uma explanação lúdica e fantasiosa sobre a criação do romance em questão, permitindo-se realizar até mesmo uma releitura do próprio conto ao colocar as várias facetas de Dickens em um mesmo cosmos. 

Christopher Plummer é o nome que rouba a cena, mais uma vez. Encarnando o anti-herói de Um Conto de Natal’, sua caracterização não se restringe apenas ao aplaudível trabalho da maquiagem e dos efeitos especiais, mas também alastra-se para seus trejeitos vocais e corporais. Diferentemente de outras investidas para adaptar a narrativa escrita, este talvez seja a mais coerente releitura de Scrooge, afastando-se de quaisquer estereótipos para uma subjetividade arquetípica e complexa que humaniza uma das figuras mais desprezíveis da literatura inglesa. Isso permanece desde sua primeira aparição até os momentos finais – que por um lado deixam a desejar pelo excesso de felicidade e pela premeditada conclusão fabulesca do “e todos viveram felizes para sempre”. 

De qualquer modo, o diretor Bharat Nalluri não deixa que essa divertida história discorra em vão, e utiliza-se de suas habilidades para dialogar com a fluidez narrativa: as construções imagéticas prezam por planos-sequência muito bem estruturados e o uso de contra-plongées que brinquem com a ideia de superioridade e inferioridade, seja socioeconômica, seja psicológica, ainda que, algumas vezes, permaneça na zona de conforto da comum montagem de ação-e-reação. Nalluri trabalha com maestria com a fotografia burlesca e expressionista de Ben Smithard, o qual usa e abusa de recursos estilísticos como o contraste entre branco e preto e o excesso de uma duvidosa névoa – mesmo que sofre algumas influências de um infeliz pedantismo identitário. 

O Homem que Inventou o Natal é uma caprichosa e tragicômica visão acerca da vida e obra de Charles Dickens. Mesmo com seus aparentes erros, é impossível não se encantar com as minúcias de seus incríveis visuais e não se envolver com atuações convincentes de um elenco on point. Podemos não ter exatamente uma rendição que honre por completo uma obra tão atemporal – mas definitivamente estamos no caminho certo. 

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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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