É muito difícil encontrar alguém que nunca tenha ouvido falar de ‘Avatar: A Lenda de Aang’ – e mais difícil ainda encontrar alguém que não tenha se apaixonado pela animação. Exibida pela Nickelodeon entre os anos de 2005 e 2008, a série animada criada por Michael Dante DiMartino e Bryan Konietzko e supervisionada pelo lendário roteirista Aaron Ehasz carrega consigo um impacto inigualável que atravessa gerações e, mais do que nunca, mostra-se extremamente necessária tanto como narrativa crítica quanto como base para explorações artísticas em vários gêneros cinematográficos e televisivos.
Uma década e meia mais tarde, a premiada produção – que levou para casa cinco Annie Awards e um Emmy Award ao longo de três anos – provou o que muita gente já imaginava: sua atemporalidade. Voltando a conquistar a afeição dos pequenos com a divulgação da versão em Blu-ray e com a chegada da série às plataformas de streaming, a popularidade de ‘Avatar’ alcançou níveis surpreendentes, sendo até mesmo revisitada pelos fãs que a acompanharam religiosamente desde o episódio piloto. A verdade é que, através de temas bastante pertinentes para análises sociais e antropológicas sobre autoritarismo, preconceito e supremacia (introduzindo o pensamento crítico para as crianças e levando-os a refletir sobre a tênue linha que se estende entre o bem e o mal).
Mais do que isso, a narrativa faz um ótimo uso das concepções da ficção fantástica para criar um mundo único e simples, passível de entendimento para qualquer um que aceite o convite de se aventurar nesse universo. Afastando-se da obviedade de franquias do gênero que ganhavam o mundo – como ‘Harry Potter’ e ‘O Senhor dos Anéis’ -, a dupla idealizadora da obra sempre foi apaixonada por animes japoneses, filmes de ação de kung-fu, ioga, filósofos orientais e tudo que provinha de países asiáticos, especialmente da China e do Japão (via IGN). O belíssimo, narcótico e complexo resultado colocou em voga construções do Oriente com o máximo de respeito possível, drenando influências dos dogmas hinduístas, taoístas e budistas, das artes plásticas e musicais medievais locais e até mesmo usando cenários reais para compor as ambientações – como a Grande Muralha e a Cidade Proibida chinesas, ou então as locações da Tribo da Água, inspiradas nas culturas inuit e sireniki.
Mas vamos à história: a trama principal gira em torno de Aang, um jovem garoto de doze anos que permaneceu cem anos congelado em um iceberg junto ao seu companheiro animalesco, um bisão voador chamado Appa. Ao ser resgatado pelos irmãos Katara e Sokka, da Tribo da Água, descobrimos que Aang, por ser o último sobrevivente dos Nômades do Ar, é o Avatar, um ser de poder quase infinito com habilidades de dominar todos os elementos naturais do mundo em que vivem – e o único capaz de terminar a derradeira guerra iniciada pela Nação do Fogo e por seu comandante, o Senhor Ozai. Porém, as coisas não são tão simples como parecem e, além do fato de ser uma criança sem qualquer treino profissional, sua ausência não premeditada deixou tudo mais complicado – e lhe deu apenas dois meses para se tornar um expert bélico antes da batalha final.
É claro que, de cara, o transbordante enredo parece difícil de acompanhar. Mas, espalhando-se ao longo de 61 breves episódios de vinte minutos cada um, a trama tem tempo o suficiente para se expandir e se retrair como quiser, investindo nas mais diversas incursões em prol de permitir que nos apaixonemos por cada persona levada às telinhas. Como já mencionado, a imprescindível temática serve como uma tragicômica reverberação do que já presenciamos ou conhecemos através dos livros de história – e, utilizando-se de arquétipos e de arcos irretocáveis que fornecem aos protagonistas e coadjuvantes camadas e mais camadas de conturbações pessoas e externalizações traumáticas, entendemos o real propósito DiMartino e Konietzko.
Aang, Katara e Sokka são forçados a amadurecer perante forças malignas que erguem-se no horizonte e que pretendem destruir quaisquer obstáculos à sua frente – seja pelo crescente domínio da Nação do Fogo, seja pelo exilado príncipe Zuko, que tomou para si a missão de capturar o Avatar, levá-lo de volta ao pai e recuperar sua honra perdida. A dialógica construção com tantas produções audiovisuais das últimas décadas é o ponto-chave para nos sentirmos confortáveis com o que é-nos apresentado – mas ganha dimensões inesperada quando percebemos que as principais peças desse medonho e condenável jogo não passam de crianças, obrigadas a sair de suas condições etárias e imporem-se em prol de ideologias divergentes e objetivos conflitantes.
De um lado, temos a bruta ambição de Zuko, alimentada pelo ódio de ter sido humilhado na frente de todos que conhecia e de nunca ter tido o apoio de Ozai em sua breve vida; de outro, temos a solidão de Aang e sua drástica realização de que não tem com quem contar e que tudo o que conhecia não existe mais. As personalidades distintas ganham um capítulo mais fervoroso quando ambos os protagonistas representam duas extremidades de uma mesma linha – a pacífica e a beligerante. Nos vários momentos em que os inimigos se encontram no mesmo lugar, Aang recusa-se a matá-lo, permanecendo intacto até o final da terceira temporada, em que sua relutância é o último obstáculo a ser enfrentado; Zuko usa da força para se provar digno de seus oponentes, mas percebe, interiormente, que seu descontrole pode ser sua ruína – explicando com maleabilidade considerável o motivo de se unir ao Avatar no ciclo resolutivo.
Há algo resplandecente em deixar que o próprio roteiro ganhe vida, infundido em uma mitologia criada ao longo de séculos e mais séculos de tradição. Desde as diferenças artísticas gritantes entre os quatro Reinos (Água, Terra, Ar e Fogo) até os valores defendidos por seus membros, nota-se que a distinção e a valorização da diversidade vêm em primeiro plano, nem que seja para reforças os ideais fascistas de supremacia racial defendidos pela Nação do Fogo. Ozai, na verdade, entra em guerra por acreditar que seu povo é o mais valioso de todos, talvez pelo fato de conseguirem conjurar chamas do nada – algo que não acontece com as outras tribos. Sua mentalidade fechada e controversa é o motivo pelo qual Azula, sua filha e irmã de Zuko, torna-se uma psicopata mortal e uma vilanesca presença que pavimenta caminho entre Aang e seu destino.
Os próprios membros de um determinado reino diferem-se entre si, visto que alguns não têm poderes especiais e outros são capazes de realizar as dobras – manipulação dos elementos naturais. Os estilos de luta são derivados de diversas artes maciais chinesas: as dobras da água, por exemplo, derivam dos movimentos de alinhamento, estrutura e visualização do t’ai chi; as da terra buscam inspiração no hung gar, principalmente pelas poses firmes que conversam com a solidez do elemento em questão; as do fogo são simbologias para o bak sil lam, luta que faz uso constante dos braços e das pernas, bem como das mudanças direcionais; e, por fim, as do ar se relacionam com o ba gua, que drena movimentos circulares e dinâmicos – tudo isso canalizado para uma homenagem aos clássicos filmes asiáticos dos anos 1960 e 1970.
Eventualmente, cada detalhe é pensado com minúcia extrema, contribuindo para representações que unem-se em um ciclo interminável e histórico. Com base nisso, as reviravoltas presentes no roteiro mostram que nem tudo é o que parece ser e, conforme os protagonistas são jogados aos leões em obrigatórios e fundamentais amadurecimentos, temas mais anfigúricos e obscuros (no melhor sentido dos termos é claro). Passando longe de influências circinais e cansativas – e desconstruindo a imagética clássica para uma iconoclasta crítica até mesmo à utopia social -, a delineação de cada segmento é chocante, arrepiante e puerilmente elegíaca (por mais antagônico que isso seja).
Dando origem à também aclamada, ‘A Lenda de Korra’, que gira em torno da sucessora de Aang e que infelizmente não teve a mesma aceitação do público, ‘Avatar’ modificou as estruturas outrora engessadas dos enredos infanto-juvenis e adultos, mesclando-os de modo aprazível do começo ao fim. Sua originalidade teve influência em diversas produções contemporâneas, como ‘O Príncipe Dragão’, ‘O Vazio’ e ‘Caçadores de Trolls’, e, mesmo uma década depois de seu lançamento, continua se provando valiosa para a arte audiovisual.