Lars von Trier é um dos diretores mais contraditórios que existem na indústria do cinema contemporâneo, não apenas por seus discursos chocantes – não é à toa que ele ainda é considerada persona non grata no Festival de Cannes -, mas principalmente pelo teor de suas produções. Muitos associam seu nome a obras como ‘Anticristo’ e ‘Melancolia’, que desafiaram inúmeros tabus e foram aclamadíssimos tanto pela crítica quanto pelo público. Entretanto, os longas em questão podem ser considerados os mais quadrados esteticamente falando, por se encaixarem nos métodos do cinema clássico, ainda que se afastem das fórmulas narrativas; alguns anos antes, Von Trier redescobria em uma escola que sempre procurou seguir a ferro e a fogo com ‘Dogville’, uma alegoria religiosa travestida de drama de superação.
A trama gira em torno de Grace (Nicole Kidman), uma jovem moça que chega à cidade-título fugindo de um grupo de gângsteres e pede asilo e proteção para seus residentes. A comunidade, escondida nas montanhas, sempre permaneceu na maior pacificidade possível e não foi até a aparição da nossa heroína que tiveram que lidar com algo assim. Após uma breve deliberação na pequena igreja, o “líder” Tom Edison (Paul Bettany), de nome propositalmente sugestivo, resolve abrigá-la em troca de ajuda nas atividades diárias, como limpeza, manutenção da ordem, plantio e outros. Grace automaticamente aceita e passa a habitar uma pequena casa, construindo laços com os outros habitantes e tentando conquistá-los pouco a pouco.
Levando em conta os trabalhos anteriores do diretor, como ‘Os Idiotas’ e ‘Dançando no Escuro’, nada do que nos é apresentando se mantém na superfície. Primeiro, a obra é dividida em dez partes (um prólogo e nove capítulos), apresentando os personagens e como cada qual insurge em pequenos fragmentos orgânicos que sofrem uma possível desestabilização com a entrada de uma nova parte não programada. Já é possível sentir essa quebra de atmosfera quando compreendemos dois fatos principais: Tom utilizando Grace como objeto de estudo acerca da teoria de que a comunidade não conseguiria aceitar mudanças externas e o fato da história ser ambientada no período logo após a Grande Depressão dos Estados Unidos.
“Nada é o que parece ser” é uma das premissas a serem buscadas dentro do longa, mas a máxima “o homem é essencialmente ruim” parece conversar mais com a construção de seus personagens. Ao passo que os eventos se desenrolam e a protagonista declara seu amor pela pequena cidade, mais verdades passam a fazer parte do cotidiano dos moradores. A publicação de um cartaz com seu rosto e com a legenda procurada é o ápice para que cada um abuse ainda mais de sua boa vontade – incluindo violências psicológicas e físicas por cada um dos coadjuvantes. Além das cenas de estupro, há sequências em que Grace é obrigada a sofrer nas cruéis mãos de Ma Ginger (Lauren Bacall).
A partir de metade do filme, a personagem de Kidman mergulha no complexo de Jesus Cristo, tornando-se uma mártir para um bem maior. A comunicação evasiva dificulta a recuperação de uma confiança que nem deveria deixar de existir para começo de conversa. Ela tenta a todo custo agradar a todos, mas no fundo cultiva um ressentimento gigantesco que transparece ainda mais quando começa a desenvolver uma relação abusiva com Tom, que permanece complacente com as injustiças que sofre. É óbvio prever uma tragédia cujos ares são delineados pouco a pouco até encontrarem seu abismo sem fim.
Von Trier não se baseia apenas na narrativa para manter o público conectado. Como supracitado, ele retorna às bases do Dogma 95 – uma série de “leis” a serem seguidas para a produção de filmes de seus participantes – e, ainda que não o siga ao pé da letra, faz bom uso de suas cláusulas mais irreverentes. Logo, a trama se passa em uma ambiência sem cenários, com limites demarcados por linhas brancas no chão, exigindo de cada um dos atores um trabalho ainda maior do que o esperado, visto que estão o tempo todo encarnando suas respectivas personas; neste quesito, Kidman é a que consegue roubar mais a cena, mostrando uma versatilidade cândida e única em meio à massa amorfa de seus “companheiros”, que na verdade são podres debaixo de roupagens de cidadãos do bem.
O cineasta faz um bom uso de uma câmera praticamente livre, totalmente conduzida pela mão e obrigatoriamente marcada pelos deslizes bruscos de um ator a outro. A princípio, ela parece estranha, mas em composição com alguns planos de pleno orgasmo simétrico, faz sentido dentro do escopo existencialista do roteiro também assinado por Von Trier. Os cortes bruscos, retomados da estética cubista, são constantes e contribuem para a preparação de um público a uma conclusão angustiante e que, em última instância, reflete aquilo que o diretor quis transmitir: a natureza mesquinha e arrogante do ser humano. Nem mesmo a casta e religiosa Vera (Patricia Clarkson) se salva de inclinar-se no pior que o homem tem a oferecer.
Eventualmente, a trama chega a seu final épico, herdeiro das tragédias gregas com sequências catárticas de tirar o fôlego. Tom trai a confiança de Grace após esta rejeitá-lo e chama os gângsteres apenas para descobrir que o chefe é, na verdade, pai dela. A heroína mostra-se cansada e exaurida após sofrer nas mãos daquelas pessoas e também cede às suas fraquezas, prenunciando a confirmação silencioso de um sangrento e explícito massacre que apenas tem fim com a última frase proferida pelo narrador: “Dogville é uma cidade da qual o mundo não precisa”.
‘Dogville’ não é uma exclusividade do cinema, mas sim um conto universal e atemporal que serve como compreensão dos extremismos sociais que passamos hoje – incluindo a falta de empatia e de alteridade em relação ao outro. E ainda que tente buscar uma saída otimista, o longa quebra todas as expectativas com seu retrato torturante e amargurado de uma realidade triste e enfadonha.