domingo, abril 28, 2024

Artigo | Os 27 Anos de ‘O Corcunda de Notre Dame’, uma das animações mais subestimadas da Disney

Lançado em 1996, ‘O Corcunda de Notre Dame’ continua, até os dias de hoje, como um dos títulos mais controversos do panteão Walt Disney – não por trazer mensagens subliminares ou preconceitos mascarados, mas sim por investir em uma temática de maior obscuridade que as obras anteriores.

A animação, dirigida por Gary Trousdale e Kirk Wise, é uma das principais adaptações do clássico romance homônimo de Victor Hugo, apesar de mudar pontos-chave da narrativa para apresentá-la a um público jovem. O livro, publicado pela primeira vez em 1831, é um dos ícones do movimento romântico francês e, assim como ‘Os Miseráveis’ (também assinado pelo autor), traz inúmeras reflexões antropológicas através do contraste entre os valores enraizados do clero e das camadas marginalizadas da sociedade, como os ciganos. Tanto na original quanto na releitura da Casa Mouse, o enredo é centrado em Quasímodo, um homem corcunda que vive no alto de Notre Dame e sob a tutela do arquidiácono Claude Frollo, um religioso que luta contra atos pecaminosos, mesmo que se renda a eles constantemente.

Adaptar uma obra de tal peso para os cinemas, principalmente para uma audiência tão específica e dentro de um gênero que não admitia muitas ousadias – e talvez isso explique o relativo fracasso quando comparado às produções da época, inseridas num momento conhecido como a Era da Renascença Disney. ‘O Corcunda de Notre Dame’ fez um modesto barulho nas bilheterias, arrecadando US$325,3 milhões mundialmente a partir de um altíssimo orçamento de US$100 milhões. A encargo de comparação, ‘A Pequena Sereia’, lançado em 1989, e ‘A Bela e a Fera’, de 1991, tiveram budget relativamente pequeno e, para além da aclamação universal, fizeram um estouro comercial, chegando até mesmo a ofuscar outras iterações conterrâneas.

A verdade é que a animação em questão já vinha em um contexto conturbado, em que parcelas tradicionalistas da sociedade já vinham reclamando pela manutenção dos valores e da ética familiar – e não aceitavam algo que fugisse do padrão. É claro que esse fator não foi decisivo para a morna estreia da produção, visto que a Disney sempre apostou em construções fantasiosas para passar mensagens positivas aos jovens espectadores. E, à medida que o roteirista Tab Murphy, ao lado de sua extensa equipe criativa, folheava as páginas do romance de Hugo, talvez tenha tirado tanto da essência crítica do romance que moldou a história a seu bel-prazer, sem perceber que as análises calcadas eram fortes demais para serem compreendidas.

Para aqueles que não se recordam, o filme trouxe no elenco de dublagem nomes como Tom Hulce, Demi Moore, Tony Jay e Kevin Kline e focou primariamente em Quasímodo, que foi “acolhido” por Frollo após este matar sua mãe, tornando-se o responsável por tocar os sinos da catedral. Protegido do mundo exterior, Quasímodo tinha apenas as divertidas gárgulas da torre para conversar, mas ansiava por conhecer a trupe de ciganos que passava pelas ruas de Paris e aventurar-se pelo mundo – bem como tantos outros protagonistas da Casa Mouse. Entretanto, não é essa otimista história (que já sabemos como termina) que nos prende, e sim a obscura condução de cada subtrama que se espalha em cada persona.

Ambientado no século XV, no reinado de Luís XI, a tensa situação entre líderes religiosos, uma monarquia decadente e a ascensão de grupos minoritários em uma comunidade segregada também foi levado ao filme de 1996 sem muitos filtros por assim dizer. Esmeralda e Frollo, duas forças opostas que representam a justiça e a impunidade, respectivamente, conflagram-se com diálogos pesados que soam muito familiar aos discursos de resistência e de lutas de classe; a caça dos soldados franceses e a hostilidade anticiganista é traduzida com ameaças de morte e de humilhação pública; a utilização de truques de ilusionismo é também reminiscência do período inquisitorial da Europa medieval, em que o incompreensível era visto como algo demoníaco e passível de condenação eterna.

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Diferente de tantas outras obras, a unidimensionalidade dos personagens é deixada de lado por uma complexidade interessante e, por esse motivo, fora dos padrões de simbologia que os realizadores da Disney costumavam imprimir. Frollo reza à Virgem Maria para que o livre dos desejos luxuriosos que têm para com Esmeralda, descontando a raiva acumulada em preces contra a danação eterna e contra o feitiço que a cigana jogou contra ele (vide “Hellfire”, uma poderosa canção de ressentimento e de vingança divina); Esmeralda, retratada como uma gentil mulher, não se cale perante iniquidades e autoritarismos, sempre buscando livrar a comunidade a que pertence de sofrer com represálias injustificáveis; Quasímodo, enfrentando a própria deformidade e aquele que outrora considerava como pai, é acolhido pelos ciganos e percebe que a beleza vai muito além da superficialidade; e até Phoebus, capitão da guarda de Frollo, pondera a moral que lhe foi destinada ao se aliar a Esmeralda.

Na iminência de seu 25º aniversário, ‘O Corcunda de Notre Dame’ permanece como um subestimado e controverso título da Disney – criticado pelos fãs de Hugo, pelos cinéfilos e pelos especialistas em virtude de um desequilíbrio temático e criativo que não parecia adequado a ninguém. Entretanto, são essas mesmas razões que demonstram a importância e a ousadia da animação em fugir dos preceitos solidificados do gênero e abrir discussões que, anos depois, ganhariam os palcos do cenário mainstream.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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