No final dos anos 1960, os Estados Unidos passavam por um dos períodos mais controversos e conturbados da sua história – não que o país nunca tenha baseado sua “popularidade” em eventos do tipo. Entretanto, na época em questão, o governo estadunidense se envolvia com uma condenável guerra com o Vietnã, encarada por todos como uma atitude incabível pelo presidente Lyndon B. Johnson, que aumentava exponencialmente o número de soldados inexperientes e jovens para serem massacrados em uma batalha que não lhes pertencia – e que fazia parte de uma mentalidade neo-imperialista que não se importava com as pessoas, e sim com a dominância. É claro que tais políticas de “abatimento” foram encaradas com repúdio por grupos militantes e libertários, que se reuniam em protestos conflitantes para demandar a saída dos Estados Unidos da guerra.
Eventualmente, os manifestantes e a polícia entraram em um sangrento conflito, o que levou o governo a prender oito nomes principais das rebeliões para julgá-los como culpados, antipatriotas e incitadores do caos – e, enquanto ficaram conhecidos como os 8 de Chicago, um deles teve suas acusações retiradas por não ter se envolvido com a história (o co-fundador do grupo conhecido como Panteras Negras, Bobby Seale). E foi a partir daí que surgiu a produção da Netflix intitulada ‘Os 7 de Chicago’, um poderoso drama legal comandado pelo vencedor do Oscar Aaron Sorkin – que atingiu seu amadurecimento como cineasta depois da sólida, ainda que convulsionada, estreia com ‘A Grande Jogada’ três anos atrás. E, considerando que a narrativa havia ganhado inúmeras versões documentais e dramatizadas ao longo dos anos, Sorkin teria um trabalho complexo ao apresentar ao público uma perspectiva diferente dos fatos, uma que se afastasse dos convencionalismos de gênero.
O resultado, ainda que com seus pontuais defeitos, é satisfatório e instigante do começo ao fim, mais pela dinâmica montagem e pelo explosivo roteiro do que por qualquer coisa. Entretanto, não podemos de mencionar o estelar elenco guiado pela força descomunal de nomes como Eddie Redmayne, Sacha Baron Cohen e Mark Rylance – e até mesmo um desperdiçado Yahya Abdul-Mateen II que, mesmo com a brevidade de suas aparições, causa uma comoção honrável ao interpretar Seale. Como já era de se esperar, Sorkin traz elementos de suas investidas anteriores (como diretor e como roteirista, principalmente), para criar uma espécie de universo crítico e impiedoso, movido pela verborragia incessante e por elementos artísticos que, às vezes, esbarram no preciosismo dramático.
O filme apresenta ao público uma extensa e profunda análise sobre a corrupção do sistema judiciário e sobre algo que é-nos apresentado como “julgamento político”. Afinal, nenhum dos réus entende com certeza absoluta o porquê de estar perante o tribunal: de um lado, Redmayne interpreta o líder do movimento estudantil Tom Hayden, uma pacífica persona que permanece retraído e prefere não se envolver com aquilo que desconhece; de outro, Cohen e Jeremy Strong dão vida à irreverente dupla hippie e politizada Abbie Hoffman e Jerry Rubin, rebeldes com uma causa bastante direcionada que se vale de frases de efeito e quebras de expectativas – e que não diferem a “importância” premeditada de juízes e o anonimato de um oficial de polícia; e, no topo de tudo isso, temos John Carroll Lynch como o pacífico David Dellinger, que, por sua própria experiência, sabe como lidar com as adversidades.
Tais figuras cruzam caminho através do fio condutor da narrativa, materializado pelo arco tour-de-force de Rylance como o radical advogado e defensor dos direitos civis William Kunstler – o qual enfrenta sem pensar duas vezes a demagogia narcisista de nomes como o juiz Julius Hoffman (Frank Langella), que nem se preocupa em conhecer os nomes dos acusados, como também já tem sua decisão definida muito antes da sessão começar. É nesse claustrofóbico cenário, que oscila entre a opressão governamental e a centelha de esperança de jovens revolucionários, que o enredo ganha vida, cujo potencial transbordante é explorado em quase sua totalidade. E, entre discussões necessárias sobre a liberdade de expressão, a brutalidade policial e a corrupção sistêmica, é incrível o modo como Sorkin fornece os elementos necessário para humanizar emblemas engessados em livros de história e reapresentá-los a um mundo que precisa conhecê-los.
O longa dosa com sabedoria a comicidade e o drama, além de realizar movimentos de dilatação e contração através de um ritmo enérgico e que nos impede de tirar os olhos das telas. As quebras de expectativa e a proposital falta de senso de certos personagens servem como máscara para uma ácida crítica àqueles que mandam e àqueles que cegamente obedecem homens inescrupulosos que não colocam a mão na massa, preferindo contratar bodes expiatórios que façam o trabalho sujo por eles; enquanto isso, a tragédia legislativa que se desenrola diante de nossos olhos é sustentada por clímaces metalinguísticos e evocativos, além de premeditar reviravoltas talvez espetaculares demais para serem levadas a sério – isso sem mencionar a substancial e novelesca trilha sonora encabeçada por Daniel Pemberton.
A “modernidade histórica” da qual a obra se vale é outro indicativo do coming-of-age artístico não apenas da trama, mas também da carreira de Sorkin. O roteiro é instantaneamente um reflexo de trabalhos predecessores, como ‘A Rede Social’ e ‘Steve Jobs’, ainda mais quando canalizamos a atenção para os altivos monólogos e para os diálogos metafóricos e entroncados entre polos opostos; a edição, por sua vez, é uma derrocada asserção comandada por Alan Baumgarten, frequente colaborador de Sorkin que ficara responsável por ‘A Grande Jogada’ e, aqui, certamente teve mais espaço criativo.
‘Os 7 de Chicago’ continua como um dos melhores títulos originais da Netflix. Mais do que isso, é uma peça que reafirma a visão e a competência ímpares de seu diretor e roteirista como um dos nomes a dominar os holofotes nos anos que virão.