A década de 1990 e o começo dos anos 2000 foram bastante férteis para a insurgência das sitcoms. Séries como ‘Seinfeld’ e ‘Friends’ redefiniriam o gênero, enquanto ‘How I Met Your Mother’ tentou revitalizá-lo sem muito sucesso – pelo menos quando nos lembramos do pífio e apressado final. É claro que, quando pensamos nas comédias de situação, normalmente ambientadas em poucos cenários e com a obrigatória presença de uma fiel plateia, é quase imediato nos recordarmos de como o Disney Channel também viralizou o gênero com criações infanto-juvenis que também auxiliariam a alavancar a carreira de nomes bastante conhecidos da indústria contemporânea do entretenimento – e, à prima vista, ‘One Day at a Time’ parece ser tirado do canal que se tornou responsável por saturar ao máximo as sitcoms.
Felizmente, a série, na verdade, é muito mais profunda do que aparenta e consegue funcionar tanto como um sutil drama coming-of-age quanto uma hilária comédia familiar que traz personagens inusitados para as telinhas. Já no primeiro episódio, somos apresentados à família Alvarez, com descendência direta cubana que se mudou para Los Angeles ainda na época ditatorial de Fidel Castro, cuja estrutura é basicamente matriarcal. A responsável por tomar conta de todos é Penélope (Justina Machado), uma protetora mãe que praticamente tem uma personalidade bastante única por tudo o que já fez na vida: além de trabalhar de meio-período como enfermeira, ela serviu o Exército durante a guerra no Afeganistão e agora passa por um conturbado divórcio com seu traumatizado marido, que lutou ao seu lado e desenvolveu inúmeros problemas – se recusando a procurar ajuda.
A princípio, seria muito fácil cair nos convencionalismos narrativos de produções audiovisuais semelhantes. Porém, os criadores Gloria Calderon Kellett e Mike Royce fazem questão de se afastar de quaisquer fórmulas o máximo que conseguem, oferecendo uma perspectiva interessante que se baseia principalmente em gerações distintas. Penélope é a geração dos anos 1970 que viu o mundo mudar de forma bruta e, apesar de não ter tido todas as oportunidades possíveis, faz de tudo para que seus filhos Elena (Isabella Gomez) e Alex (Marcel Ruiz) consigam alcançar todos os seus sonhos. E até mesmo seus filhos fogem das construções esperadas: Elena é uma adolescente de quinze anos feminista e militante que tem uma consciência de classe muito grande, enquanto seu irmão mais novo se importa com sua aparência e sua posição no time de basebol da escola.
O trio possui uma química gigantesca que praticamente transborda das telinhas, mas não é nenhum deles quem rouba os holofotes. A veterana da indústria Rita Moreno, retornando com uma glória irretocável como Lydia, mãe de Penélope. Ela representa o clássico de uma forma contemporânea divertidíssima e livre de quaisquer travas, com uma personalidade complexa ao mesmo tempo em que entrega algumas das melhores falas – tão irreverentes quanto sua personagem. E o mais interessante é que, ainda que suas rápidas respostas forneçam o dinamismo que uma trama como essa precise, os momentos de drama são arquitetados com cautela extrema e colocados em cenas-ápice envolvente e emocionantes – realmente, é muito difícil segurar as lágrimas quando Lydia recorda de sua conturbada infância.
O pano de fundo da primeira temporada se restringe à aguardada festa de quinze anos de Elena, uma das tradições da cultura cubana que Penélope e sua mãe resolveram manter – mesmo mergulhadas no modo de vida norte-americano. A quinceañera é mencionada em basicamente todos os episódios, mas não de forma solta, e sim de modo a fornecer certa estrutura para a insurgência de outros assuntos de extrema importância, incluindo questões de gênero, herança, colonialismo compulsório, orientação sexual e muitas outras coisas. Logo nos primeiros capítulos, Elena lida com a perda de sua melhor amiga devido à política dos imigrantes ilegais, além de se assumir lésbica para a família; Penélope lida com dores insuportáveis e traumas do passado que não consegue compartilhar com a família; e Lydia, mesmo quebrando nossas expectativas, usa seu obscuro passado como forma de manter todos ali dentro do pequeno apartamento unidos.
É claro que, eventualmente, todos acabam funcionando como escape cômico, mas é Schneider (Todd Grinnell) que ganha também terreno fértil como o dono do prédio e vizinho nada sutil que volta e meia participa de reuniões familiares e jantares de fim de semana, além de tentar se mostrar como um homem branco heterossexual descontruído e, por fim, repetir os mesmos discursos de sempre. De qualquer forma, Schneider representa a classe majoritária e privilegiada que ao menos possui certa noção de seu local na sociedade e sempre deseja aprender aquilo que não conhece.
Em determinado momento, principalmente para concluir as pequenas tramas que se iniciam e se completam no mesmo episódio, as fórmulas das sitcoms falam mais alto e drenam um pouco o brilho e a originalidade do show. Porém, é muito fácil esquecermos desses deslizes devido às aplaudíveis atuações do elenco em geral e da belíssima e quase fabulesca mensagem que resolve entregar para os telespectadores. E é justamente na season finale que esses problemas falam mais alto e colocam em cheque uma estrutura familiar tradicional em prol da diversidade e da aceitação – e isso se mostra com uma sensibilidade ímpar que já dá nome ao jogo para o ano seguinte.
‘One Day at a Time’ alcança um patamar muito maior do que nos promete. Além de trazer discussões importantes para o público, resgata a glória do gênero cômico com diálogos muito inteligentes e que arrancam gargalhadas inúmeras vezes sem forças e sem saturar.