quarta-feira , 25 dezembro , 2024

Artigo | Relembrando ‘A Dama na Água’, um dos filmes mais conturbados de M. Night Shyamalan

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Premissas interessantes costumam ser desperdiçadas vez ou outra na indústria cinematográfica hollywoodiana – e infelizmente este é o caso com A Dama na Água, filme de 2006 dirigido e escrito por M. Night Shyamalan que se tornou um dos maiores fracassos de sua carreira.

Estamos familiarizados com os grandes e bem construídos plot twists que acompanharam a carreira do cineasta – vide ‘O Sexto Sentido’, uma de suas obras mais famosas. Neste longa-metragem, poderíamos esperar algo semelhante ou que fizesse jus a seus outros trabalhos, mas em vez disso nos deparamos com o que pode ser considerado como uma das narrativas mais pretensiosas e absurdas da década.



Como citei no primeiro parágrafo, a base da trama principal tem o seu charme, mas não é desenvolvida com clareza e competência o suficiente para agradar ao público ou à crítica. Tudo gira em torno de um ser místico – uma mistura humanizada de fada das águas e ninfa -, interpretado por Bryce Dallas Howard (que já havia trabalhado com Shyamalan em ‘A Vila’) e chamado Story, cuja aparição num condomínio classe média atrai a atenção do zelador Cleveland Heep (Paul Giamatti), tirando-o de uma zona de conforto e monotonia extremos e colocando-o numa rede de intrigas que vai muito além de sua compreensão.

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Acontece que Story está tentando retornar para seu lar – aqui denominado de mundo azul, fazendo uma clara e desnecessária analogia sutil aos oceanos -, mas está sendo ameaçadas por criaturas malignas que habitam seu mundo. Deste modo, cabe aos moradores daquele complexo residencial cuidar para que seu retorno seja realizado com sucesso e para que a ordem seja reestabelecida entre duas dimensões completamente diferentes.

Devo dizer que a construção mitológica tem o seu valor para a narrativa, mas este não é explorado em todo o seu potencial. Shyamalan dá-se ao trabalho de inventar praticamente um ecossistema completo para deixá-lo de lado na maior parte de seus 109 minutos. Obviamente, temos algum protagonismo por parte de Scrunt, um ser que se assemelha ao lobo, mas tem a capacidade de se camuflar ao solo e seus olhos são capazes de paralisar outras criaturas. Este é o principal antagonista – ou deveria ser; mas logo aprendemos que o “vilão da história” é a sua própria falta de coerência.

Cleveland logo emerge como um arquétipo desconstruído do herói, trabalhando para manter Story a salvo até que tudo possa se resolver. Ele, pois, parte para os outros moradores do condomínio, afim de encontrar respostas para um mistério milenar e para cumprir a profecia proferida pela protagonista, a qual disserta enigmaticamente sobre um grupo de pessoas – de “salvadores” – cujo trabalho em equipe conseguirá mandá-la de volta para casa.

A narrativa é saturada, com diversas camadas desequilibradas que em momento algum se unificam por completo. Com exceção dos personagens de Dallas-Howard e Giamatti, as outras personas não conseguem adentrar nem na vertente arquetípica, nem na estereotípica, por simplesmente serem inverossímeis demais para se criar qualquer laço com o público. Nós não torcemos para que tudo dê certo no final, e sim olhamos com certa repulsa a arrogância de suas histórias e de seus objetivos – o próprio Shyamalan participa do filme como Vick Ran, um escritor cujo destino está fadado à ruína por seu pensamento controverso e seu constante desejo de mudar o mundo (e isso é dito por Story várias vezes durante A Dama na Água, reafirmando a importância desnecessária que ele tem para o desfecho – ou simplesmente para afofar o ego do diretor).

Até mesmo as viradas são previsíveis. Enquanto a narrativa de ‘O Sexto Sentido’ ou de ‘Sinais’ direcionava o público para uma linha de pensamento e, pouco antes do grand finale, fornecia uma resposta catártica e completamente inesperada, aqui tudo pode ser concluído logo após a metade do filme. De acordo com a profecia, cada um dos habitantes interpreta um papel de suma importância, seja como Curandeiro, como Guerreiro ou como Escriba. Não é nenhuma surpresa que os sinais de Story sejam mal interpretados e que o tempo de conclusão seja estendido até os segundos finais: e caso isso não tivesse acontecido, todos os obstáculos e problemas teriam sido resolvidos em questão de segundos.

Nem mesmo a paleta de cores harmoniza com a identidade da obra: tons muito pesados e saturados de verde e azul acompanham quase toda a trama, mas não transmitem as sensações corretas para as sequências. Combinados, ambos os espectros poderiam tanto indicar um perigo crescente ou uma segurança falha dentro de uma construção arquitetônica que chama pela resguarda – um condomínio (lugar onde deveríamos, ao menos em tese, nos sentir confortáveis). Mas sua dispersão em cena é tamanha que estas sensações se mesclam a uma trilha sonora genérica, composta por James Newton Howard, cujos ápice são pontuais e induzem o público a sentir uma coisa irreal.

Apesar disso, devo dizer que o arranjo orquestral é interessante, retomando outras obras épicas e mitológicas, mesmo que não tenha uma identidade original. Violinos, violoncelos e a suave melodia da flauta doce são os principais componentes, principalmente nos momentos em que Story sai de sua crise existencial e intimista para alguma revelação epifânica – as quais, na maioria das vezes, são risíveis (e dão para uma criança a capacidade de ler as entrelinhas das caixas de cereal).

Christopher Doyle também faz um trabalho interessante e digno de nota como diretor de fotografia, por vezes optando pelos plongées absolutos ou contra plongées para transmitir a imponência em constante queda da ambientação principal. O complexo residencial, chamado de The Cove, tem uma arquitetura exagerada e grandiosa, e mesmos suas paredes fortificadas, apesar de exaltadas pelos ângulos e pelos planos bem escolhidos, não são capazes de impedir forças sobrenaturais de ameaçarem a pacificidade daquele lugar e a segurança de Story.

Mesmo com alguns picos de positividade, A Dama na Água é um marco a ser descartado da carreira de Shyamalan, configurando-se como um filme essencialmente prepotente e cuja construção não passa de rearranjos formulaicos de narrativas que já conhecemos há muito tempo – e através de obras melhor estruturadas.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Estamos familiarizados com os grandes e bem construídos plot twists que acompanharam a carreira do cineasta – vide ‘O Sexto Sentido’, uma de suas obras mais famosas. Neste longa-metragem, poderíamos esperar algo semelhante ou que fizesse jus a seus outros trabalhos, mas em vez disso nos deparamos com o que pode ser considerado como uma das narrativas mais pretensiosas e absurdas da década.

Como citei no primeiro parágrafo, a base da trama principal tem o seu charme, mas não é desenvolvida com clareza e competência o suficiente para agradar ao público ou à crítica. Tudo gira em torno de um ser místico – uma mistura humanizada de fada das águas e ninfa -, interpretado por Bryce Dallas Howard (que já havia trabalhado com Shyamalan em ‘A Vila’) e chamado Story, cuja aparição num condomínio classe média atrai a atenção do zelador Cleveland Heep (Paul Giamatti), tirando-o de uma zona de conforto e monotonia extremos e colocando-o numa rede de intrigas que vai muito além de sua compreensão.

Acontece que Story está tentando retornar para seu lar – aqui denominado de mundo azul, fazendo uma clara e desnecessária analogia sutil aos oceanos -, mas está sendo ameaçadas por criaturas malignas que habitam seu mundo. Deste modo, cabe aos moradores daquele complexo residencial cuidar para que seu retorno seja realizado com sucesso e para que a ordem seja reestabelecida entre duas dimensões completamente diferentes.

Devo dizer que a construção mitológica tem o seu valor para a narrativa, mas este não é explorado em todo o seu potencial. Shyamalan dá-se ao trabalho de inventar praticamente um ecossistema completo para deixá-lo de lado na maior parte de seus 109 minutos. Obviamente, temos algum protagonismo por parte de Scrunt, um ser que se assemelha ao lobo, mas tem a capacidade de se camuflar ao solo e seus olhos são capazes de paralisar outras criaturas. Este é o principal antagonista – ou deveria ser; mas logo aprendemos que o “vilão da história” é a sua própria falta de coerência.

Cleveland logo emerge como um arquétipo desconstruído do herói, trabalhando para manter Story a salvo até que tudo possa se resolver. Ele, pois, parte para os outros moradores do condomínio, afim de encontrar respostas para um mistério milenar e para cumprir a profecia proferida pela protagonista, a qual disserta enigmaticamente sobre um grupo de pessoas – de “salvadores” – cujo trabalho em equipe conseguirá mandá-la de volta para casa.

A narrativa é saturada, com diversas camadas desequilibradas que em momento algum se unificam por completo. Com exceção dos personagens de Dallas-Howard e Giamatti, as outras personas não conseguem adentrar nem na vertente arquetípica, nem na estereotípica, por simplesmente serem inverossímeis demais para se criar qualquer laço com o público. Nós não torcemos para que tudo dê certo no final, e sim olhamos com certa repulsa a arrogância de suas histórias e de seus objetivos – o próprio Shyamalan participa do filme como Vick Ran, um escritor cujo destino está fadado à ruína por seu pensamento controverso e seu constante desejo de mudar o mundo (e isso é dito por Story várias vezes durante A Dama na Água, reafirmando a importância desnecessária que ele tem para o desfecho – ou simplesmente para afofar o ego do diretor).

Até mesmo as viradas são previsíveis. Enquanto a narrativa de ‘O Sexto Sentido’ ou de ‘Sinais’ direcionava o público para uma linha de pensamento e, pouco antes do grand finale, fornecia uma resposta catártica e completamente inesperada, aqui tudo pode ser concluído logo após a metade do filme. De acordo com a profecia, cada um dos habitantes interpreta um papel de suma importância, seja como Curandeiro, como Guerreiro ou como Escriba. Não é nenhuma surpresa que os sinais de Story sejam mal interpretados e que o tempo de conclusão seja estendido até os segundos finais: e caso isso não tivesse acontecido, todos os obstáculos e problemas teriam sido resolvidos em questão de segundos.

Nem mesmo a paleta de cores harmoniza com a identidade da obra: tons muito pesados e saturados de verde e azul acompanham quase toda a trama, mas não transmitem as sensações corretas para as sequências. Combinados, ambos os espectros poderiam tanto indicar um perigo crescente ou uma segurança falha dentro de uma construção arquitetônica que chama pela resguarda – um condomínio (lugar onde deveríamos, ao menos em tese, nos sentir confortáveis). Mas sua dispersão em cena é tamanha que estas sensações se mesclam a uma trilha sonora genérica, composta por James Newton Howard, cujos ápice são pontuais e induzem o público a sentir uma coisa irreal.

Apesar disso, devo dizer que o arranjo orquestral é interessante, retomando outras obras épicas e mitológicas, mesmo que não tenha uma identidade original. Violinos, violoncelos e a suave melodia da flauta doce são os principais componentes, principalmente nos momentos em que Story sai de sua crise existencial e intimista para alguma revelação epifânica – as quais, na maioria das vezes, são risíveis (e dão para uma criança a capacidade de ler as entrelinhas das caixas de cereal).

Christopher Doyle também faz um trabalho interessante e digno de nota como diretor de fotografia, por vezes optando pelos plongées absolutos ou contra plongées para transmitir a imponência em constante queda da ambientação principal. O complexo residencial, chamado de The Cove, tem uma arquitetura exagerada e grandiosa, e mesmos suas paredes fortificadas, apesar de exaltadas pelos ângulos e pelos planos bem escolhidos, não são capazes de impedir forças sobrenaturais de ameaçarem a pacificidade daquele lugar e a segurança de Story.

Mesmo com alguns picos de positividade, A Dama na Água é um marco a ser descartado da carreira de Shyamalan, configurando-se como um filme essencialmente prepotente e cuja construção não passa de rearranjos formulaicos de narrativas que já conhecemos há muito tempo – e através de obras melhor estruturadas.

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