terça-feira, maio 7, 2024

Artigo | Steven Spielberg, Christian Bale e o coming-of-age do subestimado ‘Império do Sol’

Steven Spielberg, em toda sua filmografia, sempre soube lidar com crianças. Sua primeira investida no mundo da ficção científica, com E.T. – O Extraterrestre’, talvez seja uma de suas obras mais memoráveis – e não podemos nos esquecer da incrível performance de Drew Barrymore como a pequena Gertie. Entretanto, para que a jovem alcançasse toda a catarse necessária para as cenas mais dramáticas, fazia-se necessário um tato imprescindível e que foi manejada de modo hábil pelo cineasta. Falamos, porém, de um filme de aventura, voltado para um público-infantil; o que aconteceria caso Spielberg migrasse bruscamente para um escopo caótico, ditado pelas duras regras bélicas da década de 1940, e trouxesse como protagonista um jovem garoto que é arrancado de suas raízes abastadas para uma ambiência quase condenável?

É justamente a isso que o diretor se propõe a fazer com Império do Sol’. Baseado no romance homônimo de J.G. Ballard, a história gira em torno de uma garoto que se perde dos pais após uma represália ocorrer na cidade chinesa em que vivem, e então mergulha em um arco de reencontro perscrutado por inúmeros obstáculos tanto internos quanto externos que inclusive o levam a parar num campo de refugiados britânico em plenas planícies asiáticas. O protagonista Jamie “Jim” Graham é encarnado pelo novato Christian Bale, que viria a se tornar um dos atores mais versáteis da indústria hollywoodiana, sendo chamado inclusive de “camaleão” por sua incrível capacidade de se adaptar intrinsecamente a qualquer papel que lhe fosse designado. E é nesse longa-metragem que Bale firmou sua futura reputação e roubou completamente os holofotes da época.

Primeiramente, devemos entender que Jim não é como qualquer outra criança: sua mente aberta é uma extensão da própria perspectiva pueril e inocente que Spielberg sempre forneceu para suas obras, mas com um fator que vai além da mera compreensão pelo que lhes damos crédito. Desde os momentos iniciais, o garoto se mostra muito mais maduro que aqueles que o cercam, por permitir pensar “além da caixinha” e dissertar em suas próprias palavras sobre assuntos como Deus, sobre sonhos e até mesmo sobre a guerra, da qual tem noção que acontece, apesar de não senti-la de forma palpável. Ele tem noção e, vivendo bem longe de seu país natal – a Inglaterra – ele corrobora com a genialidade bélica dos japoneses, crendo piamente que eles serão os reais vencedores da guerra por serem mais estrategistas.

É claro que esse pensamento tem como principal base a segurança familiar fornecida por seus pais, John (Rupert Frazer) e Mary Graham (Emily Richard). Não é nenhuma surpresa que, apesar deste ser um filme de guerra, o personagem principal mergulhe em uma forçada jornada do herói às avessas e completamente distorcida, separando-se deles de modo abrupto e forçado e continuar sobrevivendo perante à gradativa decadência de seus semelhantes. Assim como as inúmeras figuras míticas que têm como incidente incitante de seus arcos a perda do arquétipo parental, Jim sofre um choque terrível em uma das sequências mais emocionantes e tensas do cinema contemporâneo: em meio à caótica confusão, Jim se embrenha na multidão para resgatar um pequeno objeto que sempre carrega – a versão em miniatura de um de seus aviões favoritos – e acaba perdendo de vista Mary. Rapidamente, ele sobe em um dos veículos para procurá-la e se vê impotente frente à onda de chineses, japoneses e britânicos que a arrasta para longe até que ela se perca de vista.

Spielberg tem uma capacidade incrível de criar incríveis obras de arte com a câmera e com o jogo de luzes. Na sequência supracitada, ele e o diretor de fotografia Allen Daviau mesclam os melancólicos tons neutros próprios de uma ambientação em ruínas ao gradativo vermelho e laranja que se alastram conforme o exército japonês toma controle das ruas da cidade. É impressionante ver como, utilizando-se de um enquadramento que segue a linha do olhar do protagonista, a situação que se desenrola é muito mais aterrorizante – até mesmo seus trajes escolares vermelhos se fundem ao pano de fundo em chamas, colocando-o em um ciclo aparentemente inquebrável.

Jim logo começa a enxergar as coisas de uma outra perspectiva. Se os enquadramentos outrora o colocavam como submisso à sua condição acalentada pelos pais, agora ele está por conta própria. Ainda que consiga retornar para casa, ele não tem mais as figuras adultas tanto de John e Mary quanto de sua governanta. Sua crescente estadia à mercê de um mundo perigoso e mais complexo do que sempre imaginou se relaciona à deterioração da mansão em que vivia, cuja explicitação é representada pela piscina que existe no quintal. O garoto retorna ao seu estado primitivo e de completa barbárie à medida em que toda a água evapora e torna-se insípida e barrenta, assim como a nuvem de incerteza acerca de seu futuro.

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As metáforas não permanecem apenas nesse primeiro ato, mas se repetem de inúmeras formas à medida em que ele já não se reconhece. Inserido em uma sociedade marginalizada e refém de um governo tirânico e impiedoso, ele luta pelas necessidades básicas para continuar sobrevivendo, até encontrar uma breve salvação na figura do egocêntrico e oportunista Basie (John Malkovich). Ele é a típica encarnação do americano canastrão que não se importa com ninguém além de si mesmo, e apenas abraça o garoto supostamente órfão para ter um “escudeiro” para realizar o trabalho sujo. É claro que, em se tratando de um drama de guerra, ele encontra um arco de redenção não muito bem delineado, mas que o mantém preso aos convencionalismos da própria personalidade conturbada.

Jim reencontra um pouco de humanidade em uma zona de conforto mascarada. Ao ser transportado com outros personagens de extrema importância para seu amadurecimento para um campo de refugiados, ele firma-se em uma nova comunidade autossuficiente e dentro de um microcosmos totalitário. É claro que ele tenta fazer o máximo que pode para manter o clima relativamente feliz, principalmente após se mostrar grato à hospitalidade tirânica dos japoneses em uma reverência poética e marcada apenas pelo contraste entre sua silhueta e o epifânico pôr-do-sol, cuja construção intimista premedita o fim da guerra e seu retorno para um lar do qual não mais se recorda.

Uma das pessoas que mais lhe ajuda é a irreverente e a debilitada Sra. Victor (Miranda Richardson). É engraçado levar em conta como seu nome nunca nos é revelado pelo fato dela ter se entregue à perda da personalidade e enfrentar o destino que lhe foi reservado. Sua primeira aparição é ainda marcada pela tenacidade de sua maquiagem e pelas chiques roupas que exibe com tanta pompa; seu último frame a coloca em um estado de humildade excessiva em meio a um paraíso perdido, um receptáculo de todos os objetos roubados dos ingleses pelo governo inimigo e que ainda reluzem com riqueza. Ela prefere morrer em um ambiente familiar a continuar seguindo, e Jim, que presencia sua morte com uma inexpressividade compreensível, a deixa partir.

Bale é sem dúvida o ponto de maior destaque. Ele transpassa de forma reafirmativa todas as tensões que permeiam seu personagem, em delineações chocantes e extremamente impactantes, principalmente pelos olhos mareados que ora mostram lucidez, ora desistência e, como trágica finalização, a pura loucura. Seu ápice vem logo após a morte de Sra. Victor, momento no qual presencia a detonação da bomba atômica de Nagasaki e associa com a chegada da alma da mulher ao tão esperado paraíso. A construção é belíssima pelos motivos errados – e é tão simbólica que chega a ser utópica.

‘Império do Sol’ nos leva a um significado totalmente repaginado e o mais real possível sobre a vertente narrativa do coming-of-age. Apesar do longo tempo fílmico – mais de duas horas e meia – a jornada de Jamie Graham traça paralelos com as inúmeras histórias que ouvimos sobre a maior guerra de todos os tempos, mas de uma forma não-convencional e extremamente emocionante.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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