domingo , 22 dezembro , 2024

Artigo | ‘Zootopia’ e as TEORIZAÇÕES sociológicas da Walt Disney…

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O império Walt Disney não promoveu uma revolução no cenário cinematográfico por qualquer motivo; afinal, cada um dos membros dessa indústria investiu esforços significativos para construir narrativas atemporais, capazes de atravessar gerações de forma inenarrável. E, ano após anos, é notável como a Casa Mouse continua a entregar narrativas competentes e muito bem construídas, ainda que, de vez em quando, falhem em cumprir com o que prometem. Felizmente, isso não é o caso de Zootopia – Essa Cidade É o Bicho’.

A ideia começou quando Byron Howard, que viria se tornar um dos diretores da animação, apresentou nada menos que seis ideias aos executivos da Disney – uma delas funcionando como adaptação do clássico ‘Os Três Mosqueteiros’, outra girando em torno de um gato médico que transforma crianças em animais; essas ideias mirabolantes nutriam de um ponto em comum: resgatar o classicismo de animações como ‘Robin Hood’ e colocar personagens animais antropomorfizados como protagonistas. E, após conversas e mais conversas, o enredo de Zootopia nasceu.



O complexo cosmos comandado por Howard e por Rich Moore acompanha uma jovem coelha chamada Judy Hopps (Ginnifer Goodwin), cujo maior sonho é sair da pequena cidade de Bunnybarrow e se tornar uma grande policial combatendo o crime e prezando pela justiça em Zootopia, uma megalópole em que presas e predadores vivem em comunhão. Após se formar como a primeira cadete coelha em sua turma, deixar sua enorme família para trás e dar início a um novo capítulo de sua jornada – isso é, até ser atribuída com a tarefa de aplicar multas de trânsito em infratores. E, ainda que seu futuro não esteja sendo tão radiante quanto imaginava, ela sente que algo se esconde na vibrante e colorida Zootopia. Dito e feito, Judy resolve ajudar uma pobre lontra a encontrar o marido desaparecido, aliando-se com o golpista Nick Wilde (Jason Bateman) para descobrir seu paradeiro – desenterrando um obscuro segredo que explica eventos estranhos acontecendo na cidade.

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Diferente do que imaginava, Judy não enfrenta apenas um desaparecimento, mas um complô que está encarcerando predadores que, de alguma maneira, voltaram à selvageria – mesmo séculos depois de um processo evolutivo que os inibiu de seus “instintos primitivos”. E é justamente nesse ponto que a história ganha camadas muito mais profundas do que esperávamos.

O panorama de Zootopia é infundido com diversas linhas de pensamento antropológico e sociológico do funcionamento da sociedade – dialogando com linhas que perpassam o existencialismo e a dicotomia humana entre civilidade e poder. Judy é a representação maniqueísta da “bondade”, do indivíduo com intenções nobres cuja benevolência será testada constantemente por aqueles a seu redor; mais do que isso, ela é pautada em um onirismo inquebrável que demonstra sua ingenuidade perante os verdadeiros problemas e que a impede de entender que todos temos um lado bom e um lado ruim. É por esse motivo que seu arco de amadurecimento é tão bem fixado nas estruturas macrocósmicas do longa-metragem – em que ela precisa cair para poder ressurgir das cinzas e completar sua travessia.

Nick, pelo contrário, tem essa plena consciência da ambiguidade que acomete todos – ora, quando mais jovem, forçaram-no a usar uma focinheira por seu status como raposa e, por conseguinte, como predador. É por isso que ele não confia em ninguém e, se alguém quer ver-lhe como uma raposa trapaceira, é exatamente isso que ele será. Afinal, não há motivo para querer ser diferente.

Apesar de distintos em tantas maneiras, Judy e Nick se assemelham pela necessidade de serem mais do que são – uma necessidade que enfrenta complicações quando posta frente a frente com um perigo que instaura caos e medo nos moradores de Zootopia. É notável como Howard e Moore, aliados ao certeiro roteiro assinado por Jared Bush e Phil Johnston, explicitam referências filosóficas a Foucault e Heidegger, digladiando a intrínseca relação que existe entre o medo e o poder: à medida que a trama vai tomando forma, descobrimos que o prefeito Lionheart (J.K. Simmons), envolvido com o aprisionamento dos predadores, na verdade estava tentando entender o que acontecia – e o motivo dos animais estarem retornando às raízes “involuídas” de milhares de anos atrás. A verdadeira vilã é a vice-prefeita Bellwether (Jenny Slate), uma ovelha que sempre esteve à sombra de Lionheart e, ao atingir o limite, se rebela contra aqueles que sempre a deixaram desconfortável.

Em um paralelo um pouco longínquo, podemos nos recordar da icônica frase do pensador Paulo Freire, que diz que o “sonho do oprimido é ser o opressor”; apesar de Freire estar associando a máxima à liberdade promovida pela educação, podemos traçar similaridades entre a frase e a construção de Bellwether: ela se sentiu por muito tempo diminuída e invisível, mesmo pertencendo a mais de noventa por cento da população de Zootopia. E, pelo fato de não ter as características físicas de uma predadora, ela se inclinou para os efeitos do medo para expor um “inimigo em comum” e garantir uma legião de seguidores. Heidegger, inclusive, discorre sobre o medo como uma força instaurada pelo coletivo, e não pelo individual – algo que explica as motivações da antagonista.

Até Judy é arrastada para esse errôneo pensamento, emergindo como a heroína de um grupo de animais que precisava de um símbolo. A policial, movida pelo senso cego de proteger, acaba cometendo um erro gravíssimo ao promover, indiretamente, um segregacionismo ferrenho que escala a tensões sociais e que pode ser traduzida pelo abismo que permanece vivo nas nossas comunidades – como o racismo, a xenofobia e a LGBTQIAfobia. São várias as temáticas impulsionadas pelo longa-metragem e, mesmo sete anos depois de sua estreia, permanecem de importância considerável para discussão.

Zootopia configura-se como uma das melhores e mais impecáveis animações da Disney, seja por sua originalidade, seja pelo teor bastante relacionável que cria com os espectadores. Como é de costume com grandes obras-primas da sétima arte, o filme é destinado não só às crianças, mas a qualquer um que navegue por essas majestosas águas.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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O império Walt Disney não promoveu uma revolução no cenário cinematográfico por qualquer motivo; afinal, cada um dos membros dessa indústria investiu esforços significativos para construir narrativas atemporais, capazes de atravessar gerações de forma inenarrável. E, ano após anos, é notável como a Casa Mouse continua a entregar narrativas competentes e muito bem construídas, ainda que, de vez em quando, falhem em cumprir com o que prometem. Felizmente, isso não é o caso de Zootopia – Essa Cidade É o Bicho’.

A ideia começou quando Byron Howard, que viria se tornar um dos diretores da animação, apresentou nada menos que seis ideias aos executivos da Disney – uma delas funcionando como adaptação do clássico ‘Os Três Mosqueteiros’, outra girando em torno de um gato médico que transforma crianças em animais; essas ideias mirabolantes nutriam de um ponto em comum: resgatar o classicismo de animações como ‘Robin Hood’ e colocar personagens animais antropomorfizados como protagonistas. E, após conversas e mais conversas, o enredo de Zootopia nasceu.

O complexo cosmos comandado por Howard e por Rich Moore acompanha uma jovem coelha chamada Judy Hopps (Ginnifer Goodwin), cujo maior sonho é sair da pequena cidade de Bunnybarrow e se tornar uma grande policial combatendo o crime e prezando pela justiça em Zootopia, uma megalópole em que presas e predadores vivem em comunhão. Após se formar como a primeira cadete coelha em sua turma, deixar sua enorme família para trás e dar início a um novo capítulo de sua jornada – isso é, até ser atribuída com a tarefa de aplicar multas de trânsito em infratores. E, ainda que seu futuro não esteja sendo tão radiante quanto imaginava, ela sente que algo se esconde na vibrante e colorida Zootopia. Dito e feito, Judy resolve ajudar uma pobre lontra a encontrar o marido desaparecido, aliando-se com o golpista Nick Wilde (Jason Bateman) para descobrir seu paradeiro – desenterrando um obscuro segredo que explica eventos estranhos acontecendo na cidade.

Diferente do que imaginava, Judy não enfrenta apenas um desaparecimento, mas um complô que está encarcerando predadores que, de alguma maneira, voltaram à selvageria – mesmo séculos depois de um processo evolutivo que os inibiu de seus “instintos primitivos”. E é justamente nesse ponto que a história ganha camadas muito mais profundas do que esperávamos.

O panorama de Zootopia é infundido com diversas linhas de pensamento antropológico e sociológico do funcionamento da sociedade – dialogando com linhas que perpassam o existencialismo e a dicotomia humana entre civilidade e poder. Judy é a representação maniqueísta da “bondade”, do indivíduo com intenções nobres cuja benevolência será testada constantemente por aqueles a seu redor; mais do que isso, ela é pautada em um onirismo inquebrável que demonstra sua ingenuidade perante os verdadeiros problemas e que a impede de entender que todos temos um lado bom e um lado ruim. É por esse motivo que seu arco de amadurecimento é tão bem fixado nas estruturas macrocósmicas do longa-metragem – em que ela precisa cair para poder ressurgir das cinzas e completar sua travessia.

Nick, pelo contrário, tem essa plena consciência da ambiguidade que acomete todos – ora, quando mais jovem, forçaram-no a usar uma focinheira por seu status como raposa e, por conseguinte, como predador. É por isso que ele não confia em ninguém e, se alguém quer ver-lhe como uma raposa trapaceira, é exatamente isso que ele será. Afinal, não há motivo para querer ser diferente.

Apesar de distintos em tantas maneiras, Judy e Nick se assemelham pela necessidade de serem mais do que são – uma necessidade que enfrenta complicações quando posta frente a frente com um perigo que instaura caos e medo nos moradores de Zootopia. É notável como Howard e Moore, aliados ao certeiro roteiro assinado por Jared Bush e Phil Johnston, explicitam referências filosóficas a Foucault e Heidegger, digladiando a intrínseca relação que existe entre o medo e o poder: à medida que a trama vai tomando forma, descobrimos que o prefeito Lionheart (J.K. Simmons), envolvido com o aprisionamento dos predadores, na verdade estava tentando entender o que acontecia – e o motivo dos animais estarem retornando às raízes “involuídas” de milhares de anos atrás. A verdadeira vilã é a vice-prefeita Bellwether (Jenny Slate), uma ovelha que sempre esteve à sombra de Lionheart e, ao atingir o limite, se rebela contra aqueles que sempre a deixaram desconfortável.

Em um paralelo um pouco longínquo, podemos nos recordar da icônica frase do pensador Paulo Freire, que diz que o “sonho do oprimido é ser o opressor”; apesar de Freire estar associando a máxima à liberdade promovida pela educação, podemos traçar similaridades entre a frase e a construção de Bellwether: ela se sentiu por muito tempo diminuída e invisível, mesmo pertencendo a mais de noventa por cento da população de Zootopia. E, pelo fato de não ter as características físicas de uma predadora, ela se inclinou para os efeitos do medo para expor um “inimigo em comum” e garantir uma legião de seguidores. Heidegger, inclusive, discorre sobre o medo como uma força instaurada pelo coletivo, e não pelo individual – algo que explica as motivações da antagonista.

Até Judy é arrastada para esse errôneo pensamento, emergindo como a heroína de um grupo de animais que precisava de um símbolo. A policial, movida pelo senso cego de proteger, acaba cometendo um erro gravíssimo ao promover, indiretamente, um segregacionismo ferrenho que escala a tensões sociais e que pode ser traduzida pelo abismo que permanece vivo nas nossas comunidades – como o racismo, a xenofobia e a LGBTQIAfobia. São várias as temáticas impulsionadas pelo longa-metragem e, mesmo sete anos depois de sua estreia, permanecem de importância considerável para discussão.

Zootopia configura-se como uma das melhores e mais impecáveis animações da Disney, seja por sua originalidade, seja pelo teor bastante relacionável que cria com os espectadores. Como é de costume com grandes obras-primas da sétima arte, o filme é destinado não só às crianças, mas a qualquer um que navegue por essas majestosas águas.

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