“Existem alguns truques clássicos dentro de um filme: Nunca trabalhar com animais, crianças, água e 3D. Ignoramos tudo isso!” Essas foram às escarnecidas palavras do oscarizado diretor, americano de origem taiwanesa, Ang Lee (O Segredo de Brokeback Mountain), sobre a adaptação do romance ‘A Vida de Pi’, do escritor Yann Martel.
Justamente por tratar-se de uma aventura épica, que nos leva a refletir sobre o valor da vida e o conceito da presumível importância da fé – sendo assim necessária na existência de algumas pessoas –, fazendo uma intrigante comparativa, do fundamental papel da imaginação, quando você se depara com a crua e real verdade da nossa história. De como é mais fácil e adequado enxergar os fatos, de uma forma não ordinária ou prosaica. Essa é uma obra que está longe de querer insultar os não existencialistas (como quem vos escreve), mas de fazer com que os mesmos observem, de uma outra maneira, a visão do seu semelhante. Para assim respeitá-la, sem precisar, de fato, aceitá-la.
O conto traz um relato sobre o combate travado entre cinco criaturas, no Oceano Pacífico, narrado pelo indiano Piscine Molitor Patel, mais conhecido como Pi. Quando menino, ele e sua família, embarcaram num navio cargueiro, rumo ao Canadá, para escapar da inconstância política da Índia, nos anos 70. Um inesperado naufrágio deixa vivo apenas: O garoto, uma zebra, uma hiena, um orangotango e um tigre de Bengala. Salvos pelo único barco salva-vidas restante. Existindo, assim, uma verdadeira odisseia, repleta de inúmeras batalhas e caçadas, numa constante luta pela sobrevivência. Uma mágica aventura marinha de tirar o folego.
Inspirado, talvez, pela magnitude artística, residente no livro, Lee concretiza um dos filmes mais incríveis de sua carreira. Criando uma narrativa extremamente orgânica, que faz seus 127 minutos serem poucos ou exatos, para quem o assiste. Logo nos planos iniciais, passados no Zoológico, o impacto visual é estrondoso. Feito para se ver em 3D. Justamente por criar uma função junto à narrativa, e ter fator essencial dentro dela. Fazendo com que o espectador sinta todo o poder que emana de cada criatura, da chuva, das plantas, enfim, de todo o local aludido. Da mais forma palpável possível. Por muito utilizar profundidade de campo, algo crucial dentro do artifício, mas pouco empregado pelos diretores, à película é junto ao ‘A Invenção de Hugo Cabret’ e ‘Avatar’, um dos que melhores utilizaram a tecnologia.
Tudo isso muito bem auxiliado pela belíssima trilha sonora de Mychael Danna (A Pequena Miss Sunshine), que tem êxito, ao tentar imprimir variadas sensações, durante toda trama. Ou pelo chileno cinematografo Claudio Miranda (Clube da Luta), que alcança aqui, talvez, a conquista de perpetrar uma das aquilates fotografias do ano. Com lentes claras, vividas, fazendo uma pontual rima com as águas do oceano. Não podemos esquecer também do sempre parceiro de Lee, Tim Squyres, montador oficial do cineasta. Que também não passa despercebido. Já que a narrativa fílmica é toda em cima de flashforwards, algo que geralmente tende a comprometer o trabalho de montagem, Squyres mescla bem todos os momentos, sem nunca criar confusões.
Já no quesito de atuações, o filme conta com um elenco quase que totalmente novo. Intencionalmente planejado pelo próprio diretor. Que afirmou querer dar maior destaque para toda amplitude da estória. Um exemplo disso foi ator Tobey Maguire, que tinha sido praticamente contratado pela produção, para ser o entrevistador.
Porém, teve de ser sacado, de última hora, pois, segundo Lee, o fato do mesmo ter muita fama, por causa da franquia ‘Homem-Aranha’, poderia desviar o foco da fita. Entretanto, os inexperientes atores dão bem conta do recado. Com destaque para o jovem e estreante, Suraj Sharma. Que, praticamente, sozinho em cena, já que o tigre foi feito totalmente em CGI – sendo que um tigre verdadeiro foi usado apenas em sequências que apareceria sozinho, como quando ele nada no oceano -, Sharma demonstra muita força e confiança em tela. Uma atuação ao nível de Dev Patel em ‘Quem Quer Ser o Milionário?’.
Ao final da projeção, com os “reais” esclarecimentos dos fatos, a impressão obtida é a mesma que tivemos no excepcional ‘Peixe Grande’. De que é melhor aceitarmos a vida de uma maneira extraordinária, dentro de uma aventura épica, ala ‘Náufrago’ de Robert Zemeckis, ao lado de animais selvagens, enfrentando todos os medos, passando por ilhas misteriosas e, no final, descrever algo que transmita orgulho. Do que, simplesmente, relatar uma acriançada tragédia, cercada de assassinatos, evidenciando a podridão e escoria da alma humana. Concluo então, sem vergonha, junto ao entrevistador, ateu como sou, concordando com a proposta existencialista, deixada por Pi, sobre tal ponto de vista.