Recentemente foi divulgado que o clássico cult dos anos 80, Christine – O Carro Assassino, ganhará novo fôlego numa versão produzida pela Blumhouse, produtora responsável por sucessos de terror como Fragmentado (2017), Corra! (2017), Nós (2019) e Halloween (2018). Para irmos aquecendo os motores (com o perdão do trocadilho sem-vergonha), vamos relembrar ou quem sabe conhecer (para os mais novos) essa produção querida para a geração 80’s e da época das vídeo locadoras que tem dois dos maiores nomes do terror envolvidos em sua confecção.
A história tenra de um adolescente tímido e seu primeiro carro se transforma num pesadelo diabólico quando os mestres do terror John Carpenter e Stephen King resolvem narrar esta trama. Tudo começou, é claro, na forma de um livro do muito badalado autor citado. Em sua essência, Christine tem muito de Carrie – A Estranha, primeiro livro de King e a primeira adaptação de uma obra sua ao audiovisual (pelas mãos de outro mestre, Brian De Palma). Ambos Carrie e Christine falam sobre bullying, sobre como a constante hostilização e as torturas tanto mentais quanto físicas podem causar danos muitas vezes irreversíveis e fazer até mesmo o ser humano mais doce se transformar em algoz. Foi assim como Carrie White e aqui acontece o mesmo com o jovem Arnie Cunningham.
A ideia para a história de Stephen King em partes surgiu enquanto o autor trabalhava em Creepshow: Arrepio do Medo (1982) lado a lado com outro mestre do gênero e colega pessoal, o saudoso George Romero. A relação profissional ainda incluía a então esposa do cineasta, Christine Romero, e a amizade do trio foi o que King almejou homenagear ao bolar seu próximo conto o batizando com o nome da atriz e produtora. Com título pronto, King tinha a ideia de sua nova história assustadora, usando como mote para o terror um clássico automóvel americano que, segundo o escritor, se encontrava esquecido: um Plymouth Fury 1958 vermelho!
Muito mais do que uma obra sobre um carro demoníaco, que serve apenas de metáfora no conto, Christine, como dito, fala sobre o abuso constante a que os adolescentes muitas vezes são submetidos, numa época em que não se falava muito sobre isso e que o bullying não possuía a repercussão de hoje. Obras como o texto de King anteviram os famosos e trágicos massacres em escolas dos EUA (e agora do mundo) motivados pelo sofrimento causado a jovens tímidos e pouco populares. O protagonista aqui, Arnie Cunningham, se encaixa justamente em tal perfil. O personagem, sem muitos atrativos, “se apaixona” à primeira vista quando bate os olhos em Christine, um carrão clássico vermelho à venda no jardim de uma casa. Bem, ou quase um carro, já que o automóvel se encontra tão velho e danificado pelo tempo que só tem a oferecer basicamente a carcaça. Mas isso não é empecilho para a atração de Arnie e este amor é o que move a trama da história.
Arnie gasta seu tempo livre se tornando um mecânico expert e aos poucos, de todas formas que pode, vai montando Christine de volta ao que era, a seus tempos áureos. Christine é o nome dado ao veículo por seu antigo dono, mantido de muito bom grado pelo novo proprietário. O paralelo aqui é muito interessante, pois a cada nova peça colocada, a cada novo passo que Arnie dá em revigorar seu automóvel, ele vai igualmente se tornando novo, se remodelando. A restauração serve de via de mão dupla e ao final do conserto de Christine, Arnie também é um novo homem, mais atraente, firme e decidido. Mais forte e potente. Começa a usar novas roupas e se torna dono de um novo estilo. Assim conquista uma “outra garota” além de Christine, a estudante transferida para seu colégio, Leigh. O que cria uma espécie de triângulo amoroso com a máquina.
Porém, essa não é uma história bonitinha ou um romance. É uma trágica história de obsessão, mortes e horror. Christine é um objeto amaldiçoado pela cobiça, pela compulsão, por atos irracionais e pela possessão. É uma máquina que desperta o pior que temos dentro de nós, fazendo aflorar nosso lado mais sombrio. Aqui é onde divergem livro e filme. E só podemos esperar para ver qual abordagem será tomada na nova produção da Blumhouse. Enquanto no texto de King foi o primeiro dono do carro, Roland LeBay, o responsável por depositar o “espírito ruim” no carro, devido a seus próprios sentimentos negativos que negligenciavam a esposa e filha em função da máquina; no longa de 1983, a opção foi por descrever Christine como uma entidade consciente logo na sua fabricação, onde após ser montada já demonstra sua ferocidade.
A atmosfera sutil e mística, que fala muito mais de sentimentos de forma quase abstrata planejada por King dá lugar para matança explícita e sobrenaturalidade na hora de vender o filme. De fato, é o espírito do antigo dono que está por trás do feito do carro, e inclusive chega a possuir Arnie no desfecho da história. Esses elementos igualmente foram deixados de lado na hora de levar a trama para as telonas.
O nome de Stephen King já era tão forte na época, que Columbia Pictures (hoje Sony), um dos maiores estúdios de Hollywood, deu sinal verde para a produção antes mesmo do autor lançar o livro. O filme começava a ser produzido com os manuscritos ainda não finalizados de King. Para os realizadores, foram oferecidos dois manuscritos do escritor para ganharem forma do próximo longa do estúdio: Christine e Cujo – este segundo viria a se tornar um lançamento nos cinemas no mesmo ano de 1983.
Na direção, outro verdadeiro mestre do gênero entrava em cena. John Carpenter se tornou um nome a ser lembrado na indústria após entregar o que foi para a época (e guardou o recorde por muitos anos) o filme independente mais rentável do cinema: Halloween – A Noite do Terror (1978). A altura de Christine, Carpenter tinha no currículo produções cult que geravam muito burburinho e angariavam uma legião de fãs, vide Fog – A Bruma Assassina (1980), Fuga de Nova York (1981) e O Enigma de Outro Mundo (1982). Curiosamente, antes de ser contratado para a direção de Christine, o cineasta visava levar às telas outro texto de Stephen King: Chamas da Vingança (Firestarter), sobre experiências científicas gerando uma menininha com dons pirocinéticos. A obra ganharia filme no ano seguinte, em 1984, tendo uma então pequenina Drew Barrymore como protagonista. Coincidentemente, Chamas da Vingança igualmente ganhará nova versão pelas mãos da mesma Blumhouse.
Para o papel principal foram testados alguns jovens atores muito promissores da época, entre eles Kevin Bacon, John Cusack e Scott Baio, mas o personagem terminou nas mãos de Keith Gordon, figura conhecida do período por ter estrelado obras famosas como Tubarão 2 (1978), All That Jazz (1979), Vestida para Matar (1980), A Lenda de Billie Jean (1985) e De Volta às Aulas (1986). Atualmente, Gordon dedica-se à função de diretor e assinou episódios de séries famosos como Dexter, Fargo, Legião e Homeland.
Para o papel da protagonista feminina Leigh, foi testada a estrela Brooke Shields, saída do sucesso A Lagoa Azul (1980). Mas quem acabou abocanhando o papel foi Alexandra Paul, que anos mais tarde ficaria conhecida como Stephanie Holden no seriado S.O.S. Malibu (Baywatch, 1992-1997). Paul possui uma irmã gêmea, Caroline, e durante as gravações pregou uma peça em seus companheiros de cena e até mesmo no diretor John Carpenter. Preparada com o figurino, a maquiagem e o penteado da personagem, Caroline, a irmã, realizou uma das cenas do clímax do longa, somente para Alexandra revelar a armação depois, sem que ninguém percebesse que não era ela.
É reportado ainda que um então desconhecido Nicolas Cage teria testado para o papel de Buddy Repperton, o principal antagonista de Arnie, líder da gangue de valentões que atormenta o protagonista.
Completando o elenco principal os veteranos Harry Dean Stanton e Robert Prosky, e os então novatos John Stockwell (que também viria a tornar-se um diretor conhecido), Stu Charno (Sexta-Feira 13 – Parte 2) e a saudosa Kelly Preston (uma das musas dos anos 80).
Apesar da aura cult que carrega hoje e de ser guardado com carinho por todas “as crias” da época, Christine – O Carro Assassino foi recebido com indiferença do grande público da época e após críticas no mínimo desanimadoras, se mostrou um relativo fracasso de bilheteira. Com os talentos envolvidos esperava-se bem mais e o resultado foi considerado no máximo medíocre. Mesmo os fãs de Stephen King e os de John Carpenter consideraram o resultado abaixo da expectativa. Torçamos para que a empreitada da Blumhouse tenha melhor sorte com o material suculento do autor.