Que os anos 80 foram a década mais politicamente incorreta todo mundo sabe. A verdade é que o mundo era outro – com uma época então dona de outros conceitos e valores, hoje tidos como ultrapassados e que não cabem mais para a sociedade moderna (apesar da insistência ainda de muitos). A frase muito usada no início dessa revolução cultural do politicamente CORRETO era “que o mundo estava ficando muito chato”.
É preciso saber separar o joio do trigo, e identificar o que é exagero e o que de fato é legítimo. Uma tarefa cada vez mais difícil. É só pensarmos que precisamos evoluir e ser pessoas melhores. E isso inclui não ofender o próximo, seja por qualquer motivo, em especial sobre sua aparência. Racismo e homofobia se tornaram devidamente crimes sujeitos à pena, assim como comportamentos machistas são intoleráveis e injustificáveis.
Mas isso é agora, e nada se aplicava aos sem noção anos 80. Bem, para ser justo, a década guarda muita coisa – a maioria na verdade – que não ficou datada e ainda se encaixa hoje. Mas é preciso levar em conta que aquela era a época extrema do macho alfa, seja em filmes de ação em que o ídolo era quem batia e destruía mais, ou em comédias em que o protagonista adorado tinha como missão levar o maior número de mulheres para a cama. Só para citar alguns exemplos. Sendo assim, algumas produções perdiam a mão em suas tramas, mesmo que a intenção final fosse boa, e o núcleo de tais filmes fossem mensagens de superação e transformação. O problema é o caminho torto que esses longas percorriam para chegar lá. Aqui, porém, nada de cancelamento histórico – somos a favor de aprender com o passado e estuda-lo, e não apaga-lo, a fim de não repetir seus erros.
Nessa nova matéria, resolvi separar cinco filmes considerados sem noção aos olhos de hoje, que jamais seriam produzidos nos dias atuais, e que envelheceram mal pelos mais variados motivos. Mas a lista dos filmes sem noção não englobam apenas produções consideradas racistas, machistas e homofóbicas, aqui também temos filmes cara de pau e outros “What the Fuck” que separamos para você. Confira abaixo e venha reviver essa época tosca em toda a sua glória.
O Brinquedo (The Toy, 1982)
Por falar em astros negros de Hollywood, um dos maiores nomes, ainda enaltecido até hoje, foi o do comediante Richard Pryor. Humorista de grande sucesso dos palcos, e um dos precursores do stand-up comedy como o temos hoje, Pryor também se mostrou um fenômeno no cinema, participando de produções famosas ao lado de Gene Wilder (sua dupla mais marcante nas telonas) e até mesmo roubando a cena do super-herói Homem de Aço, em Superman III (1983). Um ano antes, Pryor (que faleceu em 2005, aos 65 anos) estrelava este veículo chamado O Brinquedo – comédia que está completando 40 anos em 2022. O filme é na verdade o remake de uma produção francesa de mesmo nome (Le Jouet no original), de 1976.
Não é uma prática incomum Hollywood refilmar produções de outros países, ainda mais se tiverem feito sucesso, como foi o caso desta. Na trama, um milionário, a fim de comprar o afeto de seu pequeno filho, com quem não consegue se conectar, decide que o menino pode ter qualquer brinquedo que desejar. O garoto escolhe um sujeito azarado que estava na loja no momento. E o protagonista topa o joguete por se encontrar em grande dificuldade financeira. Comprar um ser humano para divertir seu filho já vem carregado de grande conotação incorreta em seu discurso, porém, a coisa ainda fica pior na versão americana. Acontece que no original francês o protagonista Pierre Richard é branco; enquanto em Hollywood, Pryor é um homem negro comprado por uma família de brancos. Pense em Corra! (2017) tratado como comédia leve e infantil.
A Cara do Pai (Carbon Copy, 1981)
Começamos com um filme estrelado por ninguém menos do que o astro Denzel Washington – hoje considerado um dos maiores nomes de Hollywood e do cinema mundial. Um dos melhores atores em atividade, Washington começou sua carreira com essa comédia que marcou sua estreia nas telonas há exatos 41 anos. Veja esta premissa e me diga o que acha: o veterano George Segal interpreta um homem branco de meia idade que tem tudo no lugar em sua vida, o que inclui um bom emprego (onde seu sogro é o dono da empresa), um bom casamento, uma bela casa e um carrão. Tudo muda na vida do sujeito quando ele descobre que tem um filho negro (Denzel), que aparece de supetão em sua porta, fazendo tudo ao seu redor se desestruturar. A intenção até pode ter sido a crítica ao racismo da época, mas muito do humor se baseia em estereótipos raciais da dita grande diferença entre comportamentos e costumes de negros e brancos. Hoje fica aquele gosto amargo na boca.
Dona de Casa por Acaso (Mr. Mom, 1983)
Hoje, é praticamente impensável fazer um filme de comédia que se baseie inteiramente na inaptidão de um homem realizando tarefas domésticas – tidas antigamente como “serviço de mulher”. Sabe aquela máxima já há muito abatida de que “lugar de mulher é na cozinha e cuidando de casa”, ou da chacota “bela, recatada e do lar”. Pois bem, imagine um filme sobre isso. No entanto, até o ano de 1983 (pelo menos), o grande público achava engraçadíssimo ver um homem cuidando de casa e dos filhos pequenos enquanto a mulher sai para trabalhar. Não é hilária essa inversão de valores? Bem, na época até poderia ser – mas hoje simplesmente não faz sentido e ficamos apenas sem entender, olhando para a tela. Mesmo na época, a mulher já tinha buscado e conquistado muito de seu espaço no mundo profissional e havia deixado o lar se empoderando. Pior é pensar que estrelando essa “patifaria” temos ninguém menos do que o revitalizado Michael Keaton – que após um passado em comédias como essa nos anos 80, viveu o herói Batman duas vezes nas telonas, e ressurgiu com uma indicação ao Oscar por Birdman – e projetos de qualidade elogiadíssimos, vide Spotlight e Fome de Poder. O mais curioso é que o filme foi escrito por John Hughes e ressurgiu como cult.
Uma Escola Muito Louca (Soul Man, 1986)
Agora chegamos no que é provavelmente o filme mais racista e de mau gosto dos anos 80 – criado de forma involuntária. Essa era para ser uma comédia tipicamente adolescente da época, onde tramas farsescas em que um jovem se disfarça como algo que não é dominavam e faziam sucesso – sem pensar nas implicações de tais atos. Como dito, era uma época diferente, onde não se tinha esta mentalidade. Assim, homens se disfarçavam de mulher, e belas moças se vestiam de rapazes sem que ninguém desconfiasse – hoje, isso teria ainda outras implicações de gênero. Mas aqui, os realizadores foram ainda mais longe, se apoderando de um artifício extremamente condenável (e não é de agora): o chamado black face. O termo é usado para definir pessoas brancas se pintando de negras em filmes ou até como fantasia – um ato considerado extremamente racista.
Para termos noção, o ato gerou enorme controvérsia até mesmo quando a atriz negra Zoe Saldana usou o artifício e pintou sua pele a escurecendo a fim de gerar mais similaridade com a cantora Nina Simone, na biografia Nina (2016) – prontamente boicotada e varrida para debaixo do tapete. Voltando, a história sem noção de Uma Escola Muito Louca traz o protagonista C. Thomas Howell, como um estudante branco que, sem conseguir vaga na universidade de seus sonhos, decide aplicar para a cota de alunos negros. O problema é que, como dito, ele é branco. A solução do “jênio”? Escurecer sua pele com medicamentos e se passar por negro, é claro! Aqui também temos todo o “humor” do filme baseado em cima de estereótipos raciais preconceituosos.
Quase Igual aos Outros (Just One of the Guys, 1985)
Por falar em comédias que podem ser consideradas machistas nos dias de hoje, chega agora à lista uma que fez muito sucesso nas exibições da Sessão da Tarde – e que tenho certeza que muita gente lembra e adora. Bem, a proposta do filme até pode ser desmascarar e combater o machismo, ainda muito em vigor na sociedade – ainda mais naquela época -, mas como dito no início do texto, alguns filmes escolhem caminhos, digamos, muito sem noção para faze-lo. O que chama atenção em filmes assim é que geralmente extrapolam os limites da farsa a qual se propõem, pedindo ao público que deem um grande salto de fé para comprar a ideia. Veja só esta premissa. Terry (papel de Joyce Hyser) é uma jovem ambiciosa, sonhando com a carreira no jornalismo. Porém, em seu colégio, todas as vagas vão para os homens, e seus professores a aconselham que seja modelo, devido à sua aparência física.
Ligado o sinal de alerta de “What the Fuck” número 1 aqui. Mas continuamos. Assim, ela bola um plano “brilhante”. Decide se matricular em outro colégio, mas desta vez vestida de menino, com uma nova identidade, a fim de provar que é boa independente do sexo. Como dito, assim como muitos itens da lista, o coração do filme está até no lugar certo, o grande problema está na forma como tudo é tratado. Junte a isso muitas piadas homofóbicas, já que Terry (um nome unissex), obviamente, se apaixona pelos rapazes da nova escola. Não tem como escapar da sensação de que isso tudo é muito errado. No elenco, William Zabka, o Johnny de Cobra Kai, recém-saído do primeiro Karatê Kid, vivendo outro valentão de colégio. O filme pode até ter sido dirigido por uma mulher, mas o roteiro foi escrito por dois homens e sua visão de mundo da época.