Sem qualquer sombra de dúvida, ‘Coringa: Delírio a Dois’ é um dos filmes mais aguardados do ano e já vem ganhando hype gigantesco desde seu anúncio há quase dois anos. Contando com o retorno de Joaquin Phoenix no papel titular que lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator e com ninguém menos que a icônica Lady Gaga, o longa-metragem promete ser uma continuação que se iguale ao impacto causado pelo projeto anterior – e, mesmo com poucas informações reveladas, é possível imaginar o que a narrativa nos aguarda.
Antes de mais nada, é sempre bom discorrer acerca das informações que temos do filme: além de Phoenix como Arthur Fleck/Coringa e Gaga como a Dra. Harleen Quinzel/Arlequina, sabe-se que o enredo não faz parte da continuidade do falecido DCEU ou da reformulação conhecida como DCU, e sim integra um universo próprio cujo enfoque é muito mais dramático e psicológico, por assim dizer. É claro que a inspiração principal provém dos quadrinhos da DC Comics – mas é notável como a abordagem é bastante diferente e aposta fichas em ambiciosas reflexões sobre a condição humana frente à sociedade em si e frente aos limites a que é imposta.
Outros nomes confirmados no elenco incluem Zazie Beetz reprisando seu papel como Sophie Dumond, bem como Brendan Gleeson, Catherine Keener, Jacob Lofland, Steve Coogan, Ken Leung e Harry Lawtey (todos estes sem detalhes revelados quanto aos personagens que irão interpretar). Uma informação importante é que, diferente do espectro de drama do filme predecessor, ‘Delírio a Dois’ será um musical, contando com quinze canções famosas do cenário fonográfico e, conhecendo o cacife artístico de Gaga, provavelmente alguma entrada original para seu espetacular catálogo.
Mas o elemento que mais pode nos dar dica do que podemos esperar da continuação é o título. Obviamente, Todd Phillips, que retorna à cadeira de direção, não daria ponto sem nó – e fez uma escolha certeira com o chamamento do filme. Afinal, como bem podemos lembrar, Coringa e Arlequina nutrem de um relacionamento extremamente psicótico e insano que já foi retratado diversas vezes nos quadrinhos, no cinema e na televisão. E é por isso que o título, no original, é ‘Folie à Deux’ – um termo psiquiátrico que significa psicose compartilhada.
Cunhado pelos psiquiatras franceses Charles Lasègue e Jules Falret, o termo é também conhecido como síndrome da desilusão compartilhada e faz menção a um distúrbio psicológico extremamente cujos sintomas de crença delirante e, às vezes, de alucinações, são transmitidas de um indivíduo a outro. E isso não se aplica apenas a duas pessoas, podendo se alastrar para trios (folie à trois), quatro (folie à quatre), entre membros de uma família (folie en famille) e em grupos de grandes pessoas (folie a plusieurs).
Tal síndrome é comumente diagnosticada quando dois ou mais indivíduos vivem em proximidade. Conhecendo a história de Arthur Fleck e da Dra. Harleen Quinzel, é apenas natural que esse distúrbio tenha aparecido; afinal, Quinzel tratou de Arthur no Manicômio Arkham, em Gotham City, e foi manipulada pelo psicopata até se apaixonar por ele – eventualmente ajudando-o a escapar do cárcere e transformando-se em sua comparsa e amante (ou seja, sendo influenciada por sua insanidade até se transformar na anti-heroína como a conhecemos).
Levando em conta o tipo de laços que Coringa e Arlequina possuem, é possível caracterizar essa psicose compartilhada como uma psicose imposta (folie imposée), em que uma pessoa dominante constrói uma crença ilusória a partir de um episódio psicótico – como vimos no filme lançado em 2019 à medida que Arthur arquiteta uma realidade paralela que nunca aconteceu e explode em uma anárquica submissão aos próprios pensamentos. A partir daí, essa desilusão é imposta à outra pessoa através de recursos de sedução psicológica.
Um tipo diferente de folie à deux é a folie simultanée (psicose simultânea), em que duas pessoas influenciam a desilusão uma da outra até se tornarem iguais ou muito similares – e a mais predisposta às ilusões psicóticas engatilham os sintomas no outro (algo que não deve ter sido levado em consideração para a sequência fílmica). E, considerando que dois contribuintes para que a psicose exista são o estresse e o isolamento social – incluindo a dependência que ambos os indivíduos nutrem um pelo outro em meio à solidão -, é quase automático imaginar que a folie imposée tenha sido a característica aproveitada por Phillips no longa-metragem.
E isso não é tudo: considerando que o longa será um musical jukebox (ou seja, com canções famosas que serão interpretadas pelos atores), Phillips aproveitou para explorar os tipos de desilusões criadas pela síndrome para esquadrinhar o relacionamento de Coringa e Arlequina. Afinal, é quase óbvio imaginar que tais sequências existam dentro da mente de ambos – estendendo-se, por exemplo, para o que entendemos como desilusões bizarras (ou seja, que não são compreendidas ou plausíveis por membros da mesma cultura), desilusões não-bizarras (que podem ser compreendidas por membros que tenham distúrbios psicológicos, por exemplo), desilusões de humor congruente (que envolvem emoções dentro de um tempo e um espaço e durante um episódio maníaco ou depressivo) e desilusões de humor neutro (que não são afetadas pelo humor, e sim partem de uma pseudo-crença adotada como real).
Lembrando que ‘Coringa: Delírio a Dois’ estreia nos cinemas nacionais em 03 de outubro de 2024.