Por Gustavo Barreto
A nova visão acerca do icônico vilão realça conceitos arraigados na filosofia e ideologia política
*o texto contém spoilers de Coringa
*Estou mais do que aberto a opiniões, educadas de preferência, daqueles que tiveram uma formação tanto em filosofia quanto ciência políticas e economia. Sou apenas um entusiasta do assunto e tento sempre fazer o melhor possível ao organizar e interpretar minhas reflexões.
Foi em 1651 que o filósofo Thomas Hobbes publicou seu clássico “Leviatã”, um manifesto da importância contida em um governo estável de modo que somente ele pode olhar pela manutenção da paz na sociedade. Tão interessante quanto, foi a frase que se tornou famosa e traduz a potencialidade do homem para a destruição: o homem é o lobo do próprio homem.
Ou seja, todo o conceito da pessoa cordial é instável de uma maneira tão obscena que eventualmente essa aparência pode quebrar e revelar algo mais perigoso. Há, porém, que se salientar que esse lobo não precisa ser necessariamente um individuo em particular capaz de grande mal (como um ditador, por exemplo), até porque ditadores ascendem ao poder por meio de governos fortes e centralizados defendidos por Hobbes, mas que pode vir na figura do caos social. Tomando como exemplo mais uma vez o “Leviatã”, o mencionado autor inglês escreveu o livro no contexto do caos gerado pela Guerra Civil Inglesa de Oliver Cromwell.
Nota-se então que da agitação social, motivada em derrubar o poder absoluto do rei Carlos I, nasceu o temor de que a pessoa mais próxima de você, na falta de uma força superior reguladora, possa se mostrar um lobo. Mais de um século depois veio a Revolução Francesa e com ela toda a reformulação de teorias políticas do ocidente. Foi nesse contexto que nasceu o ideal de esquerda e direita do espectro político, tão comentados hoje em dia, que em seu cerne foi criado para representar os lados em que os envolvidos na política francesa se dividiam na Assembleia Nacional: os assentos à esquerda representavam os partidários de uma nova república e aqueles a direita defendiam a manutenção da monarquia como força de governo na França.
Esse período, novamente carregado de grande caos social, serviu para conceder uma nova roupagem a uma ideologia muito debatida na atualidade que é liberalismo. Segundo o autor Andrew Heywood o ideal liberal é “o compromisso com o indivíduo e o desejo de construir uma sociedade em que as pessoas possam se realizar e satisfazer seus interesses pessoais”. Apesar de não ser considerado um espectro político durante a revolução francesa, muito do ideal liberal estava presente no acontecido, principalmente na forma de protesto pela mudança de status quo no país e pelo estabelecimento de um governo representativo justo.
Uma nova revolução, dessa vez a industrial no século XIX, colocaria o cada vez mais forte liberalismo em rota de colisão com contrato social (de preferência monárquico) de Hobbes. Conforme a industrialização se disseminava pelos países ocidentais, principalmente, crescia também o desejo de um estado cada vez menor de modo que ele não pudesse interferir no crescimento econômico. Para os liberais, o homem ainda é o lobo do homem e que portanto sua segurança só pode ser promovida pelo estado soberano. Sem esse estado, o homem está fadado a viver na barbárie do “estado de natureza”. Conforme estabelecido pelo filósofo John Locke: “onde não há lei, não há liberdade”.
Nesse contexto de expansão industrial nasceram duas correntes para tentar definir o que era essa ideologia: o liberalismo clássico e o liberalismo moderno.
O primeiro visa a tradição da maximização da liberdade individual, ou seja, o crescimento pessoal irrestrito em detrimento de um encolhimento do estado. Já o segundo defende que a necessidade, senão de uma intervenção direta, de um incentivo por parte do estado em promover um desenvolvimento social igualitário para todos.
O liberalismo clássico nasceu na esteira do pensamento de que “o individuo é livre na medida em que é deixado sozinho”. Para melhor explicação, a liberdade da pessoa reside em sua própria independência e uma intervenção externa (nesse caso podendo partir do estado) é impensável. Para os liberais clássicos, o papel de um governo deveria ser limitado ao que Locke definiu como “guarda noturno”, logo apenas para promover a segurança interna e externa da nação.
Do liberalismo clássico nasceu também o ideal de uma economia autorreguladora, tendo como combustível suas regras internas de oferta e procura atuando na regulação de preços em um sistema ordenado (simbolizado pela ideia da “mão invisível do mercado”). O livre mercado se tornou a filosofia econômica do século XIX, aonde o estado mínimo era requisito para o florescimento de uma economia industrial.
Conforme eu já trabalhei em uma matéria anterior, o já mencionado liberalismo moderno substituiu o clássico no decorrer do século XX como a filosofia política ocidental. Ao passo que a riqueza das nações cresciam, em especial Estados Unidos e Reino Unido que eram os principais expoentes do pensamento liberal, aumentavam também as desigualdades sociais movidas pela cada vez mais dissociável diferença entre os ricos e pobres.
Nessa esteira nasceram as políticas de bem-estar social como uma forma do governo intervir diretamente em auxílio das classes sociais cada vez mais combalidas. Ao passo que a ideia do laissez-faire (livre mercado) recuava, principalmente motivada pela grande depressão dos anos 30, cresciam os adeptos do keynesianismo e do liberalismo socialdemocrático. Este último era uma teoria desenvolvida por John Rawls no livro Uma teoria da justiça, no qual é defendida a ideia da redistribuição e do bem estar social como forma de alcançar uma igualdade. Sua ideia ia, portanto, em confronto com o ideal original do liberalismo clássico ao afirmar que o desejo dos indivíduos em evitar a pobreza generalizada era maior do que a busca pela riqueza.
Andrew Heywood, porém, afirma que o liberalismo socialdemocrático ainda é um pensamento liberal e não socialista pois está fundamentado em “pressupostos sobre egoísmo e interesse pessoal, e não numa crença em solidariedade social”. Foi somente com o retorno de crises econômicas a partir dos anos 70 que economistas passaram a voltar seus olhos para as antigas ideias do liberalismo clássico, em detrimento do keynesianismo. Nascendo assim o liberalismo neoclássico ou apenas neoliberalismo.
“O governo está cortando muitos programas sociais”
Tão importante quanto trabalhar a loucura do protagonista, o filme “Coringa” se desenvolve em cima do contexto neoliberal do início dos anos 80 amparado pelo caos social que Hobbes tanto temeu ao escrever “Leviatã”. Gotham se torna uma extensão da doença do Arthur Fleck ao ser mostrada como um esgoto a céu aberto, muito por razão da greve dos lixeiros pelo qual a cidade passa, pela infestação de ratos gerado pelo acumulo de lixo nas ruas, pelos cortes de programas assistencialistas que são a única esperança da população mais carente (principalmente da parcela que necessita de constantes tratamentos psiquiátricos, como no caso do protagonista) e, claro, pelo aumento da violência.
Gotham em muito se assemelha com as cidades inglesas que passaram a se desenvolver durante o boom da revolução industrial e do crescimento exponencial da população urbana motivado pelo êxodo rural. Com uma paisagem dominada por construção amontoadas de modo que possa comportar um fluxo sempre crescente de habitantes e principalmente pela sujeira, com mencionado anteriormente.
Socialmente, apesar do filme não mostrar de início, é compreensível que já exista certa agitação popular começando a se desenrolar, mesmo que de maneira bem pequena ou clandestina. Da mesma forma que se originou na Guerra Civil Inglesa e na Revolução Francesa, uma população quando acossada pela classe detentora do poder tende a responder, eventualmente, de maneira instintiva à sua realidade opressora. Novamente, conforme teorizado por Hobbes e Locke o “Estado Natural” volta a dar as caras.
Somente é possível vislumbrar a teoria do “Estado Natural” a partir do momento em que Arthur assassina os três jovens investidores no metrô em um ato de resposta primitiva a uma sucessão de agressões que o mesmo veio sofrendo e a opinião popular o trata como um herói. Ao mesmo tempo, seu ataque a membros provavelmente pertencentes desde o nascimento da classe detentora do poder gera repúdio instantâneo dos representantes da economia, nesse caso simbolizados em Thomas Wayne.
Nesse sentido, o desenvolvimento de “Coringa” caminha para uma implosão do ideal liberal, ou seja, um embate decisivo entre duas vertentes dessa ideologia: o livre mercado e a tradição de confrontar o status quo vigente. A época em que o filme se passa, por volta de 1981, foi construída em cima do Reganismo americano e do Thatcherismo inglês, vertentes econômicas lideradas pelos políticos Ronald Reagan e Margaret Thatcher como forma de resposta à crise do keynesianismo vigente no ocidente desde o fim da segunda guerra mundial.
Como exposto na sequência do protesto fora do local aonde ocorre a exibição de um filme de Chaplin, os presentes são todos membros da alta classe de Gotham, nisso estão presente os Wayne também, aonde pode-se especular que eles compõe o corpo econômico que em muito cresceu com o neoliberalismo, que estão entretidos e alheios as agora visíveis agitações populares do lado de fora do prédio.
Essa situação realça a ideia de bolha que marcou as sociedades inglesa e francesa pré mudanças sociais, como visto anteriormente. Geralmente representadas por uma corte real concentrada em diversões diárias e intrigas enquanto que do outro lado dos portões de ferro do palácio seus súditos encontram-se desamparados. Logo, o ato de violência perpetrado por Fleck, inicialmente atingindo diretamente pessoas ricas e depois um representante da mídia (este que durante a entrevista final com Fleck reforça seu desprezo para com a violência cometida por aquele indivíduo) se tornam um estopim de um levante social, apesar de que o filme não deixa claro a verdadeira extensão desses motins, provavelmente não chegaram a ser uma revolução.
Importante salientar rapidamente, apesar de não ser o foco do texto, que a mídia de massa é a ferramenta de propagação do levante social, apesar de possivelmente não estar tão claro assim no filme. Ao passo que tabloides, tipo de jornal tradicionalmente sensacionalista e que não goza do prestígio de modelos standard (o tipo tradicional), anunciam o palhaço responsável pelo assassinato dos investidores no metrô como um vigilante, enquanto programas de entrevista na TV (teoricamente mais respeitáveis) dão voz a Thomas Wayne que abertamente defende os jovens e culpa a população pobre de Gotham pela degradação da cidade.
Quando Arthur treina formas de cometer suicídio quando finalmente estaria ao vivo na TV, possivelmente não mirando uma finalidade política mas sim para provar ao máximo de pessoas possível que ele existia, ele traça um paralelo com a tragédia ocorrida à repórter Christine Chubbuck, que em 1974 se tornou a primeira pessoa a cometer suicídio em uma transmissão ao vivo. Caso ele tivesse levado a cabo tal plano, é provável que a mídia (em todas as suas vertentes) tomaria conta de seu ato e modelaria a narrativa para se adequar a suas ideologias. Ao invés disso, seu discurso inflamatório e um novo ato de ataque direto àqueles que detém o poder concede uma chancela simbólica para um levante geral.
Talvez seja aí que resida o fascínio em “Coringa”. Uma história sobre uma mente quebrada, uma sociedade quebrada e uma ideologia que possui tantas vertentes contraditórias que um choque é inevitável. Quase como se fosse a mente de alguém em constante conflito interno sobre quem é realmente e o que é sua realidade.