Unindo comédia e drama com uma delicadeza apaixonante, ‘Eu Nunca…’ é, sem sombra de dúvida, um dos presentes mais inesperados da Netflix para os fãs das rom-coms adolescentes dos anos 1990 – revitalizadas, é claro, para o panorama da sociedade contemporânea. A nova série da gigante do streaming, criada pela sagaz mente de Mindy Kaling (que volta para as telinhas depois de assinar o roteiro da interessante ‘Late Night’), é uma análise dinâmica para nos prender ao longo de dez breves episódios sobre a vida de uma descendente de indianos chamada Devi (Maitreyi Ramakrishnan). Ela não se encaixa em nenhum grupo de sua escola e sente-se alheia quanto à configuração de sua casa – principalmente depois que o pai sofreu um ataque cardíaco e morreu -, decidindo fazer do segundo ano de seu ensino médio um divisor de águas: ou seja, ela decide arranjar um namorado e perder sua virgindade.
Obviamente, levando o teor cômico infundido no âmago da produção, as coisas não vão como o planejado – mas esse “errático” caminho que Devi acaba escolhendo, na verdade, é o que abre portas para tantas subtramas envolventes e reviravoltas chocantes que transformam o show em algo muito maior do que poderíamos imaginar. Através de uma narrativa inteligente e uma condução cênica que tenta ao máximo se afastar de tantas outras obras conterrâneas (não conseguindo por completo, mas ousando como consegue), ‘Eu Nunca…’ cultiva um terreno fértil o bastante para discorrer sobre identidade cultural, herança religiosa, raça e orientação sexual sem cair em pedantismos panfletários e garantindo que os arcos de cada personagem sejam aproveitados ao máximo.
Kaling, supervisionando as instâncias dessa deliciosa peça seriada, procura desconstruir os estereótipos solidificados desde os anos 1990 pela esfera do entretenimento, transformando as personas em caracterizações humanas o suficiente para construir laços de afetividade com o público. A protagonista, Devi, é uma garota extremamente inteligente e comum que almeja tanto à sua entrada em Princeton quanto arranjar alguém para ter relações sexuais – e, nesse meio tempo, arrasta consigo as melhores amigas Eleanor (Ramona Young) e Fabiola (Lee Rodriguez), que a apoiam mais que tudo, apesar de terem planos próprios que realmente não incluem destinar parte de seus últimos anos no colégio para arranjar um parceiro. E, à medida que conhecemos um pouco mais sobre a conturbada vida de Devi, suas ramificações também ganham força de modo fluido e convincente.
Eleanor, por exemplo, é uma aspirante à atriz que foi “abandonada” pela mãe (também performer) e vive à sombra do que acredita ser uma carreira bem-sucedida, até descobrir que ela retornou de suas apresentações musicais após ser demitida e, agora, trabalha num restaurante mexicano, escondendo-se com vergonha de revelar o que aconteceu. Fabiola, por sua vez, percebe que está se interessando por uma colega de sala e luta para descobrir como vai dizer para seus pais perfeccionistas e para suas amigas que é lésbica – apenas para perceber que ela tem mais apoio do que imagina e que suas crises de ansiedade poderiam ser evitadas.
Eventualmente, a perspectiva se volta para as consequências dos atos de Devi: várias vezes, ela se prova uma jovem irresponsável que é movida por aquilo que idealiza em vez daquilo que tem. Ela parece acreditar num potencial relacionamento depois que convida o atleta garanhão e a princípio inalcançável Paxton (Darren Barnet) para transar – mas nada sai como o planejado e, entre algumas pequenas mentiras (que erguem-se em uma avalanche sem precedentes), os dois se tornam amigos improváveis. E isso não é tudo: no topo dessa ambiência polivalente e exuberante de possibilidades, ela lida com o trauma de ter visto seu pai morrer, tendo que viver com uma mãe superprotetora e por vezes dura demais (interpretada pela incrível Poorna Jagannathan), uma prima doutoranda em biologia de quem sente inveja (encarnada por Richa Moorjani) e sentimentos enterrados que vem à tona nos piores momentos imagináveis.
A série é ambiciosa por não ter medo de estampar o que precisa, exibindo suas mensagens com clareza imprescindível. Num nível similar, o time criativo por trás da obra corrobora com as ideologias minoritárias de Kaling e traz para as telinhas personagens que normalmente são ofuscados por figuras padronizadas, permitindo que atravessem todos os lados da adolescência com profundidade que ainda pode ser bastante explorada com os próximos ciclos. Ora, até mesmo a presença de Ben Gross (Jaren Lewison) como a cota heterossexual e branca é livre dos complexos de cavaleiro branco – inclusive quando resolve expressar seus sentimentos por Devi, de quem era um arqui-inimigo intelectual sem qualquer noção.
Guiada por narrações de Andy Samberg e do ex-tenista profissional John McEnroe, ‘Eu Nunca…’ pode ter seus equívocos e deslizes óbvios (principalmente quando pensamos em concepções técnicas), mas cumpre o que promete, tornando-se uma adição aprazível e hilária ao catálogo da Netflix – mostrando que a plataforma ainda tem potencial o suficiente para trazer para os espectadores.