Lançada em 1989, a primeira adaptação do conto dinamarquês A Pequena Sereia, feita pela Disney, foi um marco importantíssimo para a história das animações, já que representou uma virada de chave magnífica para a empresa, que vinha de uma década sombria de filmes com pegadas mais adultas que não fizeram tanto sucesso quanto suas obras anteriores. Foi nessa época que vieram longas animados como O Caldeirão Mágico (1985), As Peripécias de Um Ratinho Detetive (1986) e Oliver e sua Turma (1988). Apesar de serem considerados clássicos Cult atualmente, esses filmes deram bastante dor de cabeça para a Disney, que se viu superada em um ramo que ela praticamente ajudou a popularizar. Então, quando A Pequena Sereia se tornou um fenômeno de críticas e bilheteria, fazendo lembrar os velhos tempos, os executivos entenderam que aquele era o caminho que deveria ser seguido pela empresa nos anos seguintes. E assim foi feito. O sucesso veio, inaugurando uma fase histórica de animações da Disney, que a permitiram virar o século sendo referência para os filmes animados.
‘A Pequena Sereia’ | Conheça o PESADO conto original que inspirou as versões da Disney
Seu sucesso deixou claro para a Disney que o público estava pronto para protagonistas femininas, filmes mais coloridos e aventuras clássicas. Além disso, as premiações mostraram uma mudança de pensamento, já que as canções originais foram elogiadas e premiadas. Resultado: a década de 1990 do estúdio foi toda pautada nesses conceitos. Não é absurdo dizer que foi A Pequena Sereia que tirou a Disney da fossa, porque ditou os caminhos a serem trilhados na época boa.
Por isso, quando anunciaram uma adaptação em live action desse filme, houve um certo frenesi, não só pela importância histórica da animação, mas também porque a Ariel se tornou uma das princesas mais amadas de toda a Disney. Então, era um daqueles casos em que não poderia haver erro. Era uma aventura que precisaria marcar época para talvez enfim consolidar esse projeto capenga da Disney de fazer versões live action de seus clássicos das animações. Algo revolucionário, de qualidade inquestionável para fazer o público levar fé nessa ideia. Infelizmente, não foi dessa vez.
Com direção de Rob Marshall, do fraco Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas (2011), o novo filme já começou com uma polêmica absurda acerca da mudança de etnia da protagonista Ariel. Houve um burburinho desproporcional na internet, cheio de comentários racistas, sobre terem escalado uma atriz negra para interpretar uma sereia. No caso, não existem sereias na vida real, então é meio absurdo que as pessoas aceitem uma criatura 50% mulher 50% peixe, mas achem inaceitável que a metade humana da personagem seja vivida por uma mulher negra. Então, é melhor começar a crítica já dizendo o óbvio: a cor da atriz Halle Bailey não afetou em nada sua caracterização da Ariel. E o motivo é mais do que claro para qualquer pessoa razoável: a cor de uma sereia pouco importa para a construção da personagem. Qualquer crítica tecida nesse ponto é puramente preconceito velado.
Dito isso, vamos ao que realmente importa na construção da Ariel: a atuação. E nesse ponto, infelizmente, o filme deixou a desejar. Nas canções, Halle deu show. Sua voz impressiona com um timbre lindo e uma excelente interpretação das músicas clássicas da animação. O problema é sua atuação nas cenas que não envolvem músicas. Não dá para saber se é por conta de uma maquiagem pesada, algum procedimento estético ou apenas falta de expressões faciais, mas a atriz não consegue passar emoções simples com seu rosto. E como a direção dá bastante destaque a cenas mais fechadas nos rostos dos atores, isso acaba sendo um grande problema. Ela passa grande parte do filme com a mesma expressão, completamente engessada, como se não soubesse muito bem para onde levar a Ariel e tentasse contornar tudo com um grande “sorria e acene”, quase como um personagem de animação 3D. O que é uma pena, porque o estilo de animação usado no filme de 1989 fez da Ariel justamente uma das princesas mais expressivas do estúdio.
E essa inexpressividade não se resume a ela, porque o já consagrado Javier Bardem, que interpreta o Rei Tritão, passa longe de mostrar sua expressividade habitual em um papel também engessado e bem distante do trabalho que ele costuma realizar em tela. É uma pena também, porque seu personagem é tão mal explorado que sequer dá para entender se ele está apenas tentando ser um bom pai, como o da animação, ou se é um caso de paternidade egocêntrica, em que ele quer apenas provar que está certo e que os seres da superfície não prestam. E é aquela história: se um ator está mal no filme, o problema é com ele. Se dois atores ou mais estão mal, aí já dá para culpar o diretor.
O trabalho de Rob Marshall aqui é bem covarde. Para falar a verdade, é o grande problema do filme. Ele não consegue decidir se vai contar sua própria história ou se vai adaptar fielmente a animação. O resultado disso é um copia e cola do desenho dos anos 80, com cenas idênticas às da animação. Só que o filme original tinha 1h22 de duração. Esse aqui tem 2h20. Nessa “hora excedente”, ele tenta trazer algumas novidades, que sinceramente pouco agregam à trama e mais parecem estar enchendo linguiça para cumprir desejo dos diretores.
O que, novamente, é uma pena, porque são bons personagens que poderiam ter ganho um desenvolvimento bem melhor do que aquilo mostrado na animação, mas que por uma fidelidade desmedida, acabam tendo um papel bem similar ao do desenho animado, sendo relegados ao mero papel de coadjuvantes. Poxa, se tem uma hora a mais de filme, dava para explorar mais do passado do Tritão ou como sua relação com a vilã Úrsula se estremeceu. Em vez disso, o único personagem a ganhar uma lapa a mais de desenvolvimento é o Príncipe Eric.
Interpretado por Jonah Hauer-King, o príncipe ganha mais tempo de tela, com direito a uma melosa canção própria, que também passa a sensação de só ter entrado no corte final para bater um tempo mínimo exigido pelo estúdio. O trabalho do ator também carece de expressividade, mas considerando que a primeira opção para o papel era o cantor Harry Styles, que recusou o papel, percebe-se que poderia ser bem pior.
Por fim, falando do elenco, a Úrsula de Melissa McCarthy também é afetada pelo infeliz compromisso do diretor com a fidelidade à animação de 1989. Seu visual convence, mas a atuação explicita que ela não está compondo a personagem por si só, mas sim tentando imitar a vilã da animação. E isso incomoda. Afinal, se a ideia é ver um filme igual ao de 1989, é mais fácil (e barato) entrar no Disney+ ou colocar o DVD e assistir A Pequena Sereia no conforto do lar.
Não dá para entender o motivo de privarem o elenco de ousar e trazer coisas novas em um projeto tão ambicioso quanto esse. É um caso em que a direção aposta tanto na segurança da fidelidade que acaba criando uma obra tão carente de personalidade que pode irritar alguns. Por falar nisso, a duração de 2h20 pode passar voando em um filme bem trabalhado, mas por se tratar de uma aventura genérica, é bem provável que grande parte do público sinta bem essas horas passarem e se incomode por dar a sensação de ser mais longo do que o necessário. Em outras palavras: é um filme cansativo.
Mas ainda que seja completamente carente de personalidade, o filme consegue trazer pontos o bastante para impedir que ele seja um mau filme. Entretanto, também não são o suficiente para colocá-lo na categoria de um bom filme. É um longa “ok”, que surpreende justamente em alguns pontos que foram previamente criticados pela imprensa especializada e pelo público.
Assim que saíram os primeiros materiais promocionais, a falta de cor no filme, que trazia aquele famoso filtro cinza/ azulado nos trailers, foi um ponto que incomodou a todos. Porém, o potencial visual do fundo do mar foi bem explorado aqui, criando um visual bem interessante, principalmente nas cenas musicais. O uso das cores vivas casa bem com as canções e entretém com um visual diferente dos demais live action de clássicos Disney. Mais do que isso, a mudança de uma ilha nórdica para um reino quase caribenho permitiu que as cenas na superfície fossem visualmente mais bonitas também, explorando elementos culturais interessantes nos números musicais.
Outro ponto que causou calafrios no material promocional foram os amigos animais da Ariel, principalmente o caranguejo Sebastião e o peixinho Linguado, que pareciam buscar um realismo desnecessário e já ativou o gatilho de muitos ao lembrar daqueles animais inexpressivos de O Rei Leão (2019). O Linguado, infelizmente, ficou meio tosco mesmo. Talvez seja por isso que ele tem pouquíssimas cenas ao longo do filme. O que é uma pena, porque acabou desperdiçando o talentoso Jacob Tremblay. Já o Sebastião, surpreendentemente, ficou muito carismático. A equipe de CGI inseriu uma famosa “boquinha de siri” na criatura e usou o formato incomum de seus olhinhos para dar um jeito mais cartunizado para o animalzinho, que contou ainda com uma interpretação espetacular de Daveed Diggs, que dá um show no personagem, não apenas nas sequências musicais.
Ele também consegue ter muita química com a gaivota Sabidão, que é interpretada pela rapper, comediante e atriz Awkwafina. Não que ela vá muito além daquele papel que ela faz em todo filme, mas ela desempenha esse tipo de personagem tão bem que consegue convencer até mesmo como gaivota. A dupla brilha tanto em cena que ganha até uma música própria. Sim, o famoso rap que muitos comentaram. Particularmente, não me incomodou, porque é uma canção bobinha e divertida que casa com o momento em que é inserida na trama, mas é possível que não agrade a todos.
Ah sim, vale ressaltar que os números musicais são praticamente todos irretocáveis. Digo “praticamente” porque a música do Príncipe e a canção nova da sereia, feita para “burlar” o momento em que a Ariel perde a voz, são realmente abaixo do resto. Fora elas, a tradicional “Beije a Moça” e “Aqui no Mar” enchem os olhos, tanto pela execução vocal dos intérpretes quanto pela direção das sequências. Nesse ponto, não há do que reclamar.
Também vale o destaque para a sequência em que Ariel e Eric vão conhecer a ilha de carruagem, que consegue divertir bastante e é um dos momentos que mostram o quanto esse filme poderia ser incrível caso a direção tivesse o compromisso apenas de mostrar sua visão própria da história.
No fim das contas, A Pequena Sereia certamente dividirá opiniões. Aqueles que esperavam que o filme fosse um bela porcaria provavelmente se surpreenderão positivamente, enquanto quem esperava algo fantástico deve se decepcionar. É triste que não tenha funcionado tão bem quanto a animação em tela, justamente pela falta de ousadia do diretor em querer contar sua própria história e não tentar fazer um remake quadro a quadro de uma animação cultuada há décadas. É realmente uma pena que um título com o peso de A Pequena Sereia termine sendo apenas mais um filme que não acredita no próprio potencial.
Mas isso só reflete o posicionamento da Disney acerca dessas adaptações de seus clássicos em live action. Parece que o estúdio não quer criar novos clássicos com algumas de suas franquias mais incríveis. A impressão que dá é que, para a Disney, o importante é tentar emplacar um sucesso fabricado, mesmo que isso aumente as chances de criar uma série de projetos esquecíveis e genéricos, se opondo às inovações que as animações adaptadas trouxeram quando foram lançadas. Uma pena.
A Pequena Sereia está em cartaz nos cinemas.