Poucos elementos demarcam tão bem a desigualdade social no Rio de Janeiro quanto o helicóptero. Quando se vive em uma boa situação financeira, ver um helicóptero perto é divertido, desperta curiosidade, principalmente nas crianças. Agora, quando se vive em uma situação financeiramente mais delicada, ter um helicóptero passando por cima de sua cabeça é um pesadelo. É a demonstração da imposição do Estado sobre a região, geralmente trazendo ondas de violência e preocupação para com seus amigos e entes queridos que estão ao seu redor.
Por isso, quando Walter Salles decide iniciar Ainda Estou Aqui com um helicóptero sobrevoando a praia de Ipanema, interrompendo o sossego de uma até então pacata Eunice Paiva, a cena causa tanto desconforto. De forma sutil, o diretor já abre os trabalhos te impondo a presença estatal agressiva e brutal. Um lembrete inicial que os militares estavam sempre observando. Na verdade, se tem uma palavra que pode definir esse filme é ‘sutileza’.
Em tempos de filmes espalhafatosos e atuações exageradas, Ainda Estou Aqui aposta no caminho inverso para contar uma história extremamente íntima, inspirada nas memórias do escritor Marcelo Rubens Paiva. A trama acompanha os últimos dias do engenheiro e ex-político Rubens Paiva, que foi uma das vítimas da covardia da Ditadura Militar Brasileira na década de 70. E mesmo com todos os motivos para contar essa história de forma odiosa, o longa segue a ótica da esposa de Rubens, Eunice Paiva, para relatar esse caso tão sórdido de uma forma tão respeitosa que chega a embrulhar o estômago. Falo em respeito, porque os vilões são os militares, mas em momento algum eles são retratados como capangas atrapalhados, e sim como homens frios e inteligentes, com aparências comuns. Eles estão em todo lugar, eles podem ser qualquer um. É uma abordagem respeitosa e arrepiante. A cena em que um dos agentes é mostrado jogando totó com o pequeno Marcelo, após levar o pai do menino para uma morte desumana, agindo com a maior naturalidade do mundo, é de dar calafrios.
Falando sobre o pai, o Rubens Paiva de Selton Mello é provavelmente um dos personagens mais cativantes da história do cinema nacional. No pouquíssimo tempo que ele tem de tela, o público olha para ele e sente vontade quase de ser adotado por um rapaz tão querido. Parte fundamental das engrenagens que fazem o filme funcionar tão brilhantemente foi essa incorporação do perfeito ‘paizão’ que Selton traz para seu Rubens. É um homem amoroso e compreensivo, ao mesmo tempo em que é brilhante e engajado. Tudo que envolve ele tem uma nobreza que transcende a tela e uma empatia super-humana. É um dos papéis mais memoráveis da respeitável carreira de Selton Mello, se não for o maior. Ele consegue sintetizar de forma muito humana as melhores memórias que todos no mundo guardam de seus pais.
Vivemos uma época de protagonistas femininas ganhando espaço nas telonas, mas a interpretação de Fernanda Torres no papel de Eunice é algo realmente diferente. Ela não tem um momento “clipe de Oscar”, em que faz caras e bocas ou explode, mas te convence da dor da personagem justamente com a sutileza. Ela tem sua vida atropelada por um Estado abusivo e covarde, mas bem-organizado, então não sabe bem em quem confiar. Ela só sabe que precisa encontrar uma forma de enfrentar esse sistema sem colocar a vida e segurança de seus cinco filhos em risco. Então, ela se apega às leis, das quais não entende muito, mas acredita fielmente, e na resposta pacífica de mostrar que eles não vão derrubá-la. Sua principal resposta é um sorriso no rosto. Se a estratégia militar era a repressão, o medo, a resposta de Eunice era a esperança.
Novamente falando da sutileza, o trabalho de Fernanda Torres impressiona e comove pela simplicidade. A postura dela ao tomar ações cotidianas, como ver a sala de casa ou tomar um banho após sair do DOI-CODI é de arrepiar. Ela leva as cenas com uma presença sobrenatural em tela, trazendo um trabalho de expressão corporal encantador e sofrido. Enquanto a Eunice se mantém firme, seu corpo dá sinais de que as coisas não estão boas. É um papel fascinante e complexo, porque ela é uma protagonista feminina fortíssima e não cai no estereótipo atual do cinema do que é ser uma mulher forte. Ao mesmo tempo em que ela é corajosa e determinada, ela é uma tradicional dona de casa. Preocupada com as crianças, preocupada em fazer o jantar para o marido. Pode parecer uma contradição, mas é apenas uma mulher comum da década de 1970. Sempre houve força nelas.
E essa preocupação dela com a casa gera um dos momentos mais fortes do filme. Inicialmente, vemos Eunice sempre muito preocupada com as crianças, dando uma atenção gigante para os almoços e jantares da casa. Conforme esse processo de perda vai se desenvolvendo, há uma passagem em que a moça que a Zezé pergunta o que ela quer para o almoço e ela responde: “o que tiver”. A intervenção militar foi cruel demais, justamente porque foi destruindo não apenas a vida dos torturados, mas também foi matando os pequenos prazeres cotidianos que davam alegria à vida.
E no fim das contas, Ainda Estou Aqui é um filme sobre perda. A escolha de Salles de abrir o longa com trinta minutos de alegria e esperança no futuro de um Brasil melhor para as crianças – embora a presença militar já esteja perceptível ao redor da família – é certeira, porque dessa meia hora para frente, é só perda. É uma jornada de uma família que teve a própria vida e prazeres negados pelos golpistas militares. Tudo que remete ao Rubens e aos dias dourados é sendo destruído lentamente, mesmo que de forma indireta, pelos agentes do exército. E a forma como a casa – tão iluminada, tão musical, se transforma em uma prisão escura e silenciosa conforme as perdas vão acontecendo – é genial. É simplesmente genial.
Ainda Estou Aqui é um acerto colossal. Não apenas pelo forte caráter emocional sem ser apelativo, mas principalmente por ser uma obra sutil que transborda amor. Seja pelos personagens daquela família, seja por aquele Rio de Janeiro, aquele Brasil que sonhava com um futuro brilhante, seja por aquela casa… Tudo em tela, por mais trágico que seja, mostra um amor sem tamanhos. E a reta final é um soco no estômago. Fernanda Montenegro precisa de apenas três minutos em tela para arrepiar o público com uma atuação sutilíssima e poderosa.
É um filme que cativa por ter história, por ter personagens fascinantes, por ter uma direção apaixonada e por lembrar que não se pode dar mole. Por mais que alguns acreditem que regimes ditatoriais são uma forma de ‘corretivos’ para a sociedade, Ainda Estou Aqui mostra o real efeito deles no mundo. São tão destrutivos quanto um elefante em uma loja de porcelanas, são um mal inenarrável. Ainda Estou Aqui é uma obra-prima.