A vida é cheia de mistérios. Apesar de saber como nasceu, ninguém sabe ao certo por quê nasceu, e muitos se vão sem saber o motivo de terem vivido. É comum, então, que a definição geral de “fim” seja a morte. Quando a vida acaba – sem entrar em conceitos religiosos, de qualquer tipo de crença ou de legado, nos atendo apenas a biologia -, aquele indivíduo termina o mundo. Esse tema ainda é tabu, mesmo sendo parte da história humana desde seu surgimento, e talvez seja por isso que o mundo esteja tão fechado a debater o que é “o fim” e como ele se manifesta de diferentes maneiras. E nem sempre, para a surpresa de muitos, esse fim precisa ser triste. Nossa sociedade é gerida por uma falsa sensação de ordem e controle, que coloca cada indivíduo tentando controlar seu redor, sendo que todos respondem a um controle maior, projetado nas leis, seus criadores e executores. Mas, no fim das contas, tudo isso não passa de ilusão.
Abordando essas duas temáticas, o diretor e roteirista James Gunn constrói uma carta de amor, aos personagens e aos fãs, com a conclusão da trilogia mais espetacular do Universo Cinematográfico Marvel em Guardiões da Galáxia Vol.3, um filme que transborda “coração” para marcar a despedida do próprio diretor, que agora rege o futuro a DC, e para os fora da lei espaciais mais amados dos cinemas.
Nesta aventura, os Guardiões da Galáxia seguem no processo de reforma de Luganenhum, como visto no Especial de Festas (2022), enquanto cada membro segue lidando com esse nova realidade da vida pós-Thanos. Peter Quill (Chris Pratt) está mais perdido do que nunca. Afinal, ele perdeu o amor de sua vida em Vingadores: Guerra Infinita (2018) e sequer teve tempo de processar o luto, já que foi apagado da existência horas depois. Para piorar as coisas, quando ele voltou, cinco anos haviam se passado e ele deu de cara com uma Gamora (Zoe Saldana) de outra realidade andando por aí e ignorando sua existência. É uma sinuca de bico, porque ele sabe que ela se foi, ao mesmo tempo que sabe que uma versão dela está por aí. E diante desse conflito, ele se rende ao alcoolismo. O problema é que a nova vida continua com a presença de velhos inimigos. Assim, os Soberanos seguem com seu plano de vingança contra os Guardiões e enviam seu filho perfeito, Adam Warlock (Will Poulter), para acabar com eles. E quem se dá mal nessa história é o querido Rocket (Bradley Cooper), que fica à beira da morte após o ataque. Dessa forma, os Guardiões vão precisar correr contra o tempo para descobrir uma forma de salvá-lo, mesmo que isso signifique destrinchar seu misterioso e obscuro passado.
E aí que começa uma jornada pelo interior não apenas de Rocket, mas de todos os membros dos Guardiões. Ao longo dos últimos nove anos, vimos Peter e Gamora lutarem contra fantasmas do passado em diferentes manifestações. Drax (Dave Bautista) teve duas chances de consumar sua vingança, até compreender que essa sede por responder os responsáveis por seus traumas nada mais era que uma forma de se privar do luto e da dor. Vimos Groot (Vin Diesel) entender a amizade e o amor, se sacrificar, morrer e renascer por meio um bebê de personalidade própria, que foi criado pelos Guardiões como família. Mantis (Pom Klementieff) foi criada como escrava, nunca atendendo aos próprios desejos, mas sim às necessidades de um pai abusivo. E o Rocket, mesmo que timidamente, sempre teve uma origem misteriosa e supostamente trágica, que causou traumas tão profundos que o blindaram emocionalmente por toda sua vida, isolando a pobrezinho de relações afetivas e se tornando um membro distante dos Guardiões, mesmo que lá dentro, ele os ame e queira muito ser parte dessa equipe.
No segundo filme, vemos o Rocket ter um arco sentimental junto a Yondu (Michael Rooker), em que um se enxerga no outro e o Azulão deixa bem claro para o pequeno que seus traumas não podem ser maiores do que quem ele realmente é. Encerrar a passagem de Yondu como um grande mentor, mesmo com aquele jeitão grosseiro, foi sensacional! Mostrou a todos que não importa seus erros, sempre há tempo para encontrar seu propósito. Não um propósito para o mundo, mas para você mesmo.
Então, em Guardiões da Galáxia Vol.3, mesmo ficando fora de tela por grande parte do filme, o Rocket se torna toda a força motriz da história porque mesmo sem ter ação do personagem, a trama é sobre ele. Traumas são marcantes em nossas vidas porque são situações importantes, cujos reflexos variam de acordo com quem sofre, e geralmente chegam sem aviso e mudam de uma vez por todas a vida da pessoa. Há traumas físicos, traumas psicológicos e aqueles que englobam os dois. E no caso do nosso guaxinim favorito, infelizmente, foi o segundo.
Vencer traumas é uma coisa muito difícil, principalmente quando o tempo passa e a vítima precisa continuar vivendo sem o apoio necessário. Há quem conclua sua passagem na Terra, inclusive, sem superá-los. De forma alguma é culpa da vítima, porque só ela sabe o quanto esse evento foi definidor em sua vida. E crescer sob influência do trauma, precisando se manter vivo em um ambiente hostil, obviamente gera consequências na formação da personalidade do indivíduo e aqui o filme se desenvolve como poucos nesse meio dos super-heróis.
Rocket é um acúmulo de traumas em forma de indivíduo. Ao longo de sua vida, foi negado a ele o direito de ser criança, se divertir, desenvolver relações e criar vínculos. Até mesmo nos filmes anteriores, toda vez que ele se apegava a alguém, as situações terminavam com essas pessoas queridas morrendo ou sendo apagadas. Até mesmo no Blip, seus melhores amigos foram apagados, enquanto ele permaneceu vivo em um planeta no qual não havia ninguém para ampará-lo. Mais do que tudo, esses traumas negaram a ele o direito de se aceitar como indivíduo. Ele foi remontado em um laboratório ainda bebê, desenvolvendo uma consciência que ele não deveria ter, e desde então foi acumulando uma série de perdas e sofrimento fora do normal, sendo que seu único e mais puro desejo era explorar a beleza das cores da vida com quem ama. Assim, essa bela jornada, construída ao longo dos últimos anos, apesar dessas tragédias, passa pela difícil missão de poder se aceitar, se entender como indivíduo, para poder aceitar o fim. O Rocket é muito mais do que uma amostra feita para o descarte em um laboratório, ele importa.
Quanto aos outros membros, por mais que já tenhamos visto um desenvolvimento bem interessante previamente, eles ainda têm questões a serem resolvidas. Nesse quesito, há de se destacar a solução para o “Caso Gamora”. Como o MCU já demonstrou algumas vezes nessa nova Fase, as variantes não são apenas réplicas que vivem em outras realidades. Elas são seres independentes com mentes próprias, vontades únicas. Toda linha do tempo alternativa apagada são incontáveis vidas efetivamente morrendo e que não deveriam ser ignoradas.
Quando Vingadores: Ultimato (2019) terminou com a Gamora variante fugindo, houve uma preocupação de que fossem sobrepor suas possibilidades de futuro em prol do amor que Peter e a Gamora que faleceu desenvolveram. E aí, James Gunn mostra uma compreensão muito sensível de Multiverso ao fazer com que a variante cruze caminho com Peter e os Guardiões. É por meio dessa situação que o diretor toca num tema muito complexo de nossa sociedade, que é o controle. Apesar de todos viverem nessa constante sensação de controle, o que garante um bem-estar social, como disse lá em cima, é tudo uma grande ilusão. Não dá para controlar as vontades alheias – e ninguém sequer deveria tentar fazer isso, diga-se de passagem – e Pete, como líder dos Guardiões, sofre para assimilar que nem tudo vai sair como queremos ou desejamos.
Tem aquele ditado que diz: “Se você ama alguém, deixe-o livre. Se ele voltar, é seu. Se não, nunca foi”, mas é tão propositalmente superficial que não tende a funcionar na prática. Isso porque ele parte do pressuposto de que as pessoas precisam ceder a quem são para se encaixar na vida alheia, como uma propriedade. E a vida real tem muitas camadas além dessa frase. Mensurar amor vai além de querer “ser de alguém”, é algo que foge aos conceitos de controle e não pode depender de inseguranças. Às vezes, por mais que os apaixonados sejam compatíveis, o amor verdadeiro é compreender que seus caminhos não são os mesmos e que tolher a vida do outro em prol de seus desejos não é a melhor saída. Assim, Gunn surpreendentemente cria uma solução muito madura para essa incursão multiversal de ter uma variante vivendo numa realidade que não é a sua.
E como toda grande história, Guardiões da Galáxia Vol.3 é engrandecida pela presença de um vilão a sua altura. Interpretado pelo ator nigeriano Chukwudi Iwuji, com quem Gunn trabalhou na série Pacificador (2022), o Alto-Evolucionário é um cientista espacial completamente sádico, cujo objetivo supostamente é melhorar a realidade para criar uma sociedade perfeita. Ele não tem escrúpulos e altera vidas que ele considera inferiores para tentar concluir seu objetivo. Porém, se não atendem a suas expectativas, ele as descarta, ignorando serem criaturas vivas, com pensamentos, terminações nervosas e sentimentos. Para ele, o que não é perfeito não é digno de existir.
E o mais interessante dessa interpretação é ver como se desenvolveram as sociedades criadas por ele, como os Soberanos e a Contra-Terra. Sua definição de perfeição criou espécies arrogantes, corruptíveis e tão propensas ao erro quanto qualquer outra. E por ser um criador, ele assume um papel de divindade para muitas criaturas. E aí cabe uma série de questionamentos acerca das concepções do que é um “deus”, o que faria dele um ser benevolente ou não, já que ele dá e tira a vida com um piscar de olhos; e qual o propósito da existência de um ser que cria vida segundo seus conceitos e despeja sua ira sobre elas por seguirem aquilo que foram “programadas” para fazer.
Fato é que ele consegue despertar sensação de nojo no público em cada ação que toma, além de conseguir colocar medo apenas com sua presença em tela. É um trabalho digno de aplausos de Chukwudi, que cria um dos melhores vilões de todo o MCU, senão o melhor.
E como é um filme dos Guardiões da Galáxia, não tem como fazer uma crítica sem comentar a trilha musical. Com duas playlists fantásticas limitadas pela pouca memória de uma fita cassete, os longas anteriores foram certeiros ao trazerem canções das décadas de 60, 70 e 80. Porém, com a presença do Zune, James Gunn conseguiu trazer mais músicas e de décadas diferentes, como os anos 90 e até mesmo anos 2000.
Confesso que ao ouvir a playlist oficial do novo filme, divulgada há algum tempo pelo próprio James Gunn, não me envolvi tanto com sua totalidade, como havia acontecido anteriormente com os dois Awesome Mix, principalmente o Awesome Mix Vol.2. No entanto, ao ouvir as canções em tela, consegui criar um apego maior, porque elas são usadas tão perfeitamente, dialogando com as cenas por sua letra, melodia e mensagem, que fica impossível não sair da sessão querendo ouvir a trilha musical no modo repeat.
Mas não pense que só de reflexões e filosofias vive este filme. A comédia padrão do grupo segue maravilhosamente bem e a ação atinge um novo nível na franquia. Gunn conduz a direção com maestria, criando cenas de ação espetaculares, usando diferenças gravitacionais, armas inusitadas e situações que ficam simplesmente fantásticas em tela. Falando nisso, a tecnologia IMAX ampliar a beleza das cenas espaciais, enchendo os olhos de qualquer um que curta as cores distintas desses cenários exóticos.
Voltando a falar da ação, o diferencial da vez é que todos os personagens estão em suas plenas capacidades, resultando na exploração das habilidades de todos, seja lutando sozinhos ou atuando como equipe. Há uma cena em especial, conduzida ao som de No Sleep Till Brooklyn, do Beastie Boys, que é simplesmente espetacular. E ainda assim esse adjetivo não faz justiça ao impacto dessa sequência da mais pura excelência de pancadaria “super-heroica”.
Por fim, não é absurdo sair da sessão completamente encharcado de lágrimas diante de um filme essencialmente belo. É uma metáfora fantástica sobre a vida, a busca pela autoaceitação e o encerramento de ciclos. E que por mais que para grande parte da sociedade, o fim seja a morte, há muito mais por trás dos verdadeiros finais, como a beleza de se encontrar no propósito e as portas que isso abre para o indivíduo. Porque quando tudo se vai, só o que nos resta somos nós mesmos e o amor que cultivamos em vida. Nem toda despedida precisa ser triste, se tudo aquilo que construímos com a pureza da vida em sua essência foi tão bonita quanto uma dança sincera. James brilha ao trabalhar isso com maestria para o grupo, no melhor filme do MCU já lançado.
Guardiões da Galáxia Vol.3 estreia em 4 de maio de 2023.