A franquia Kung Fu Panda mexe um pouco comigo porque acaba dialogando com tempos efetivamente mais simples da vida. Quando o primeiro filme chegou aos cinemas, eu tinha uns dez anos de idade, quase onze, e começava a embarcar naquela fase de querer parecer adulto. Como parece não haver experiência individual na América Latina, é possível que vocês entendam como aquela época da vida em que o pirralho está entrando na pré-adolescência e tenta se distanciar de tudo que remeta à infância, como isso fosse passar uma imagem mais adulta às pessoas ao seu redor. Uma grande bobeira, óbvio, mas parte importante do crescimento. Nesse cenário de uma maturidade forçada, assisti o primeiro Kung Fu Panda nos cinemas e toda aquela pose de “já sou um homem adulto” foi por água abaixo. O que parecia ser uma história bobinha ativou meu lado lúdico, que eu lutava tanto para sobrepor, a ponto daquele ‘maior de idade de dez anos’ sair da sessão brincando de golpes de kung fu com o irmão caçula nas escadas da sala de cinema. Claramente algo muito adulto a se fazer no auge de sua primeira década de vida.
Três anos depois, já com a vida mais diferente, foi a vez de ir aos cinemas conferir a continuação. E Kung Fu Panda 2 conquistou um lugar ainda mais especial. Não só por ser mesmo um filme muito melhor, mas porque meu desenvolvimento como ser humano me fez valorizar muito ir ao cinema com a família. Meu avô sempre foi uma pessoa muito ativa e adorava os filmes clássicos de artes marciais. Naquele dia, quando fui assistir no cinema, fiz questão de chamá-lo para ir comigo e foi incrível. Na saída da sala, ele fez um comentário simples, que consigo ouvir até hoje na voz dele: “que filme bom!”. Acabou marcado como um dia muito especial, porque alguns meses depois, ele começou a piorar de saúde, e as internações em hospitais infelizmente viraram rotina nos quatro anos seguintes, até seu falecimento. E esse filme ganhou um apelo afetivo muito forte, porque meu avô sempre foi meu maior incentivador a trabalhar com cinema, me levando para várias sessões quando era menorzinho. Porém, esse hábito acabou se perdendo conforme a idade foi pesando e ele se viu obrigado a seguir trabalhando por problemas na aposentadoria. Então, se tornou muito raro ir ao cinema com quem mais me incentivou a seguir por esse caminho na reta final da vida dele. Kung Fu Panda 2 foi a penúltima vez que entrei numa sala de cinema com meu avô, e sinto que a sessão foi mais especial por ter conseguido levá-lo comigo.
Com o terceiro filme, lançado em 2016, não tenho nenhuma memória afetiva, mas desde a primeira sessão achei muito abaixo dos anteriores. Os dois primeiros capítulos tinham uma essência marcante que era dosada com o humor pateta do Po (Lúcio Mauro Filho) em meio a seriedade dos Cinco Furiosos e do Mestre Shifu. Infelizmente, no terceiro filme, as bobeiras ocuparam um espaço ainda maior, o que me afastou um pouco da trama e se transformou em decepção. Por anos, aceitei que a saga havia acabado ali e estava tudo bem. Só que anunciaram Kung Fu Panda 4 lá para o final de 2023 e surgiu aquele pé atrás. Não só porque parecia um projeto feito claramente para lucrar – não que isso seja um crime ou algo do tipo, mas também por despertar um medo de quererem reviver uma franquia que aparentemente já havia ‘dado o que tinha que dar’ nas telonas, tendo seu futuro relegado àquelas animações televisivas de qualidade duvidosa que a DreamWorks ama fazer.
Para piorar as coisas, fiz algo que não costumo fazer: vi o trailer. A primeira impressão não foi boa, principalmente no que tangia ao visual do longa, aparentemente muito próximo daquele menor orçamento das séries de TV. E depois da aberração que foi Megamente 2 (2024), confesso ter batido um desânimo. Pois bem, pude conferir o filme na cabine de imprensa e saí surpreendido positivamente, apesar de um misto de emoções. Minhas maiores preocupações não se fizeram justificar, o visual do filme é lindíssimo, mas houve alguns probleminhas que me impediram de gostar mais dessa continuação com jeitão de reboot.
A trama acompanha o não mais tão jovem Po, que encantou o Vale da Paz com suas atuações como o lendário Dragão Guerreiro e chegou ao auge do kung fu. Com sua popularidade, o panda virou um garoto propaganda e grande símbolo para a molecada da região. No entanto, diante desse deslumbramento com o próprio ápice, Po se distanciou um pouco da parte sacra da arte marcial. Assim, o Mestre Oogway orientou Shifu que havia chegado a hora do panda escolher um sucessor para o título de ‘Dragão Guerreiro’, enquanto Po deveria dar o próximo passo e se tornar um mentor espiritual.
Toda mudança é assustadora e nem mesmo Po crê que possa se tornar um poço de sabedoria, conhecimento e bons conselhos. Enquanto debatia sobre o que fazer para passar seu título adiante, o panda se deparou com Zhen, uma raposa das neves que invadiu o templo para roubar tesouros do kung fu. O problema é que uma mestre-feiticeira, a Camaleoa, estava à procura do Cajado da Sabedoria – que o Dragão Guerreiro conquistou ao fim de Kung Fu Panda 3 (2016) – para invocar mestres do kung fu do reino espiritual e roubar suas habilidades de luta. A raposinha afirmou saber como encontrar a vilã, levando Po em uma jornada repleta de confusões e trapalhadas.
O filme é uma passagem de bastão, literalmente, para concluir a saga de Po como mestre do kung fu e abraça o cliché da trama para potencializar o humor. Então, só de ler a sinopse já é possível saber exatamente tudinho que acontece no filme. A equipe criativa não se deu ao menor trabalho de ousar ou tentar surpreender, escolhendo sempre o caminho mais óbvio possível. Já na questão do humor, o longa é uma metralhadora de piadas, sendo algumas melhoradas com a tradução brasileira, que deu show ao adaptá-las com muita liberdade para o português. Ou seja, é impossível sair da sala sem dar pelo menos umas cinco gargalhadas sinceras. Quanto ao kung fu, esse talvez seja o filme da saga que mais trouxe golpes diferentes, usando de uma visão criativa da direção da retratá-los em cena, o que foi muito bom.
Porém, se o filme agarrou na diversão, ele perdeu em conteúdo. Um dos pontos mais apaixonantes dos primeiros filmes era o ar filosófico, mesmo que raso, que marcava a trajetória de Po ao se aceitar merecedor do kung fu. Aqui, talvez por já ter um panda mais cansado, todo o debate interior do protagonista foi resumido a piadocas sobre não conseguir formular frases de sabedoria. Inclusive, há uma sacada fantástica sobre os vilões da cidade não conseguirem interpretar corretamente as tiradas de sabedoria do Po, mas ainda assim fazendo o certo pelos motivos errados, o que é sensacional. É aquilo, o longa tentou se aproximar do primeiro capítulo apelando para o humor do terceiro. Nesse caminho, ele abriu mão de parte de sua essência para conseguir fazer mais graça sem tanto compromisso.
Quanto ao retorno dos vilões da trilogia, algo que havia sido destaque nos trailers, quem mais aparece é Tai Lung. O Lorde Shen e Kai, o Coletor estão ali apenas dizer que apareceram, porque não fazem ou falam nada. É curioso também ver que a volta de Shen acaba criando um certo erro de continuidade, porque o longa mostra o pavão habitando o reino espiritual do kung fu, sendo que sua missão de vida foi um grande desrespeito a essa arte marcial, já que foi ele quem tentou acabar com a luta por meio da pólvora. De qualquer forma, acredito que isso só vá incomodar aos fãs mais extremistas da franquia.
Num geral, a aventura passa longe de ser um filme ruim, só não tem a essência apaixonante dos dois primeiros capítulos da saga, o que seria importante na hora de tentar dar prosseguimento à franquia. É uma comédia muito divertida e boa para passar o tempo com um baldão de pipoca e refrigerante ao lado. No fim das contas, Kung Fu Panda 4 é muito melhor do que a gente imaginava, mas não tão bom quanto nós merecíamos. Se fosse um pouquinho mais equilibrado, seria fantástico.
Kung Fu Panda 4 está em cartaz nos cinemas.