quinta-feira , 21 novembro , 2024

Crítica 2 | “Nosso Sonho” é uma AULA de como fazer biografia nos cinemas

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Os anos 90 foram uma década muito peculiar para a música brasileira, com bandas e grupos pouquíssimo convencionais para a época ganhando notoriedade e conquistando públicos de todas as idades, incluindo o infantil, como os irreverentes Mamonas Assassinas e, claro, a dupla de MCs Claudinho e Buchecha. A época ficou marcada pela liberdade musical, após anos de repressão e limitações, numa época em que ainda havia uma galera mente fechada, vinda na ressaca do fim da ditadura militar. Nos morros do Rio de Janeiro, após anos de marginalização do Funk – um estilo musical extremamente popular reprimido pelos militares e malvisto por partes da sociedade que resistiam a ritmos vindos de fora do país -, os bailes começaram a fazer sucesso dentre os jovens, e grande parte disso veio da popularização de um movimento que mudou para sempre a música brasileira: o Funk Melody.



Prosseguindo com o legado dos bailes Black dos anos 70 e 80, o Funk Melody furou a bolha com nomes como MC Marcinho e DJ Marlboro. Influenciados pelas batidas da Soul Music e do Funk Norte-americano, o Melody queria fazer a galera dançar, impulsionados por letras românticas e a valorização das comunidades que criaram esses DJs e MCs. Mesmo já fazendo muito sucesso na primeira metade da década de 1990, foi em 1996 que o estilo virou um fenômeno nacional. Com o sucesso da dupla Claudinho e Buchecha, o Funk Melody passou a tocar em rádios do país inteiro, começaram a marcar presença nos principais programas da TV aberta e viraram presença garantida nas principais festas, aniversários, bailes e comemorações.

Embalados por hits como Nosso Sonho e “Só Love”, Claudinho e Buchecha se tornaram fenômenos da música nacional, até que um acidente terrível, em 2002, vitimou o jovem Claudinho. Com o passar dos anos, porém, o legado da dupla seguiu firme, ajudando a consolidar o Funk como elemento de identidade nacional e se tornando o principal ritmo brasileiro tocado no mundo atualmente. Diante do sucesso da dupla, a grande surpresa é que essa história tenha demorado tanto tempo para virar “coisa de cinema”.

Já em cartaz, Nosso Sonho é uma biografia musical que vem em meio a essa febre que tomou conta dos cinemas do mundo nos últimos anos. Em meio a filmes como Cazuza – O Tempo Não Para (2004), Somos Tão Jovens (2013) e Bohemian Rhapsody (2018), Nosso Sonho conta a história de Claudinho e Buchecha de forma única. Diferentemente dos três filmes citados anteriormente, essa cinebiografia reconhece os feitos únicos e méritos inquestionáveis da dupla, mas sem aquela visão exaltada de tentar transformar seus protagonistas em gênios. Não que seja errado, mas causa um certo desconforto como forçam situações extremamente banais ou até mesmo controversas para tentar exaltar os ícones da música mundial. O Cazuza não subia em mesa de bar da Zona Sul porque era gênio, o Renato Russo não dava fora nos amigos porque era diferenciado, o Freddie Mercury não usava bigode porque pensava à frente, sabe? Todos foram gênios indiscutíveis, mas a forma como essa genialidade vinha sendo abordada no cinema foi meio forçada. Nisso, Nosso Sonho brilha com uma naturalidade fascinante.

O brilhantismo da dupla e a forma como eles surgiram são retratados de forma completamente orgânica, criando simpatia e admiração sem precisar forçar. Desde a infância, o Claudinho e o Buchecha se encontravam nas brincadeiras típicas da infância fluminense, e mesmo depois de serem separados pelo tempo, voltam a cruzar caminhos por obra do destino e das consequências de um drama familiar de um deles que, infelizmente, é muito comum nos lares brasileiros até hoje. E como eles entram na música? Bem, pela influência do meio em que estão inseridos e pelo desejo mais sincero de todo adolescente de melhorar de vida e enfim namorar suas amadas. E não pensem que isso é algum demérito. Pode apostar que certamente existe algum diretor por aí que preferiria romantizar essa situação para transformar o desejo do Buchecha de pegar mulher em um traço genial de personalidade ou algo do tipo, mas o diretor Eduardo Albergaria preferiu compreender a essência dos MCs e sua importância para a cena, adaptando essa aura romântica e até mesmo infantil em um filme que trata seus protagonistas com respeito e naturalidade. É de encher os olhos ver o filme trazendo para a tela elementos culturais tão marcantes do Rio de Janeiro, impulsionado pelo otimismo e fé do Claudinho, que é um jovem sonhador extremamente carismático.

Essa dinâmica da dupla, inclusive, é sensacional e funciona com perfeição. Mesmo tendo origens parecidas e convivido desde pequenos, Claudinho e Buchecha são opostos que se completam em uma amizade de marcar época. Enquanto o Claudinho é mais otimista, sonhador e empolgado, o Buchecha é um jovem mais pé no chão, cuja maior aspiração é conseguir um emprego CLT para trazer conforto e segurança financeira para o seu futuro e o de sua família. Porém, quando estão juntos, eles se transformam naqueles amigos dispostos a tudo e capazes de enfrentar qualquer parada para se divertirem e conseguirem terminar bem o dia. E isso funciona em tela não apenas pela direção, mas por uma química sobrenatural dos atores Juan Paiva (Buchecha) e Lucas Penteado (Claudinho). De verdade, é impossível assistir o filme e não se questionar eles são amigos há uns 20 anos ou algo do tipo. E não é uma questão pura de talento, que a dupla tem de sobra, é realmente uma questão de química. Eles sobram em tela e te conquistam com uma amizade verdadeira e um humor típico do Rio de Janeiro.

O longa é conduzido sob a perspectiva do Buchecha, então há um desenvolvimento maior dos dramas do músico, só que traz também uma perspectiva muito pura sobre quem foi o Claudinho e seu papel não apenas na música, mas em sua vida pessoal. Como o próprio Buchecha diz no começo do filme, o Claudinho foi um “Anjo da Guarda” que mudou sua história em diversos momentos. Entretanto, em momento algum o Claudinho assume um papel de coadjuvante. Eles são protagonistas que se complementam, com um servindo de apoio para o outro em vários momentos.

Por se tratar de um filme sobre uma dupla de MCs, seria impossível fazer uma crítica do longa sem abordar a potente trilha sonora. Ela tem composições originais, mas é justamente por trazer a discografia de Claudinho e Buchecha para as telas que se destaca. É impressionante como a dupla foi uma máquina de hits que seguem espetaculares até os dias de hoje. E seguindo o exemplo de Rocketman (2019), a biografia musical de Elton John, o filme não coloca seus atores para dublar as canções. Eles exploram o talento musical de seus protagonistas para fazer com que eles deem sua interpretação para músicas pesadíssimas da dupla, incluindo a que dá nome ao longa. Isso traz mais veracidade para a história e mostra o quanto o trabalho dos atores foi excelente.

Falando sobre o elenco, o time de apoio também merece destaque. Nando Cunha está espetacular como o Seu Claudino, dando grande parte da força dramática do longa com sua atuação. E as surpresas ficam por conta de um time de jovens que ganharam destaque nas redes sociais nos últimos anos e agora recebem essa oportunidade de mostrarem seu talento nos cinemas, como o Boca de 09, Nego Ney, MC Negão da BL, FP do Trem Bala, e Gabriel do Borel. É incrível que eles tenham sido chamados para atuar, porque num cenário em que parece faltar apoio entre artistas, dar essa chance para uma galera que busca iniciar uma carreira no cinema é talvez o maior mérito do projeto.

Por fim, a identidade visual do filme é maravilhosa. O Rio de Janeiro é uma cidade marcante e tem uma estética própria, e o trabalho do time de reconstruir o Rio dos anos 90 beira a perfeição. As entrevistas, os programas de auditório, as camisas dos times nacionais. Tudo perfeitamente recriado para as telonas. O único erro do longa, num geral, é um pequeno deslize de figurino. Há uma cena em que o Claudinho aparece com uma camisa de treino França de 2021. É um deslize bem bobinho que chega a ser divertido, porque a cena em questão acontece em 1996 e tá lá o escudo da França com duas estrelas de campeão mundial, sendo que os franceses só viriam a ganhar sua primeira Copa do Mundo em 1998. Enfim, isso não afeta de forma alguma o nível altíssimo desse projeto, que dá aula na hora de adaptar uma biografia para os cinemas.

Trazendo uma visão diferenciada para um filme biográfico musical, Nosso Sonho é a grande surpresa da temporada e um dos melhores longas do ano. Ele te conquista pela qualidade da história, pela direção competente e pelas atuações fascinantes. E o mais legal é que ele acerta na nostalgia, mas sem usá-la como muleta. É um trabalho extremamente fora da curva que funciona como uma mensagem de amor ao Funk e à cultura nacional, aumentando ainda mais o carinho do povo por Claudinho e Buchecha e seus sucessos atemporais. Um verdadeiro show!

Nosso Sonho está em cartaz nos cinemas de todo o Brasil.

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Pedro Sobreirohttp://cinepop.com.br/
Jornalista apaixonado por entretenimento, com passagens por sites, revistas e emissoras como repórter, crítico e produtor.

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Os anos 90 foram uma década muito peculiar para a música brasileira, com bandas e grupos pouquíssimo convencionais para a época ganhando notoriedade e conquistando públicos de todas as idades, incluindo o infantil, como os irreverentes Mamonas Assassinas e, claro, a dupla de MCs Claudinho e Buchecha. A época ficou marcada pela liberdade musical, após anos de repressão e limitações, numa época em que ainda havia uma galera mente fechada, vinda na ressaca do fim da ditadura militar. Nos morros do Rio de Janeiro, após anos de marginalização do Funk – um estilo musical extremamente popular reprimido pelos militares e malvisto por partes da sociedade que resistiam a ritmos vindos de fora do país -, os bailes começaram a fazer sucesso dentre os jovens, e grande parte disso veio da popularização de um movimento que mudou para sempre a música brasileira: o Funk Melody.

Prosseguindo com o legado dos bailes Black dos anos 70 e 80, o Funk Melody furou a bolha com nomes como MC Marcinho e DJ Marlboro. Influenciados pelas batidas da Soul Music e do Funk Norte-americano, o Melody queria fazer a galera dançar, impulsionados por letras românticas e a valorização das comunidades que criaram esses DJs e MCs. Mesmo já fazendo muito sucesso na primeira metade da década de 1990, foi em 1996 que o estilo virou um fenômeno nacional. Com o sucesso da dupla Claudinho e Buchecha, o Funk Melody passou a tocar em rádios do país inteiro, começaram a marcar presença nos principais programas da TV aberta e viraram presença garantida nas principais festas, aniversários, bailes e comemorações.

Embalados por hits como Nosso Sonho e “Só Love”, Claudinho e Buchecha se tornaram fenômenos da música nacional, até que um acidente terrível, em 2002, vitimou o jovem Claudinho. Com o passar dos anos, porém, o legado da dupla seguiu firme, ajudando a consolidar o Funk como elemento de identidade nacional e se tornando o principal ritmo brasileiro tocado no mundo atualmente. Diante do sucesso da dupla, a grande surpresa é que essa história tenha demorado tanto tempo para virar “coisa de cinema”.

Já em cartaz, Nosso Sonho é uma biografia musical que vem em meio a essa febre que tomou conta dos cinemas do mundo nos últimos anos. Em meio a filmes como Cazuza – O Tempo Não Para (2004), Somos Tão Jovens (2013) e Bohemian Rhapsody (2018), Nosso Sonho conta a história de Claudinho e Buchecha de forma única. Diferentemente dos três filmes citados anteriormente, essa cinebiografia reconhece os feitos únicos e méritos inquestionáveis da dupla, mas sem aquela visão exaltada de tentar transformar seus protagonistas em gênios. Não que seja errado, mas causa um certo desconforto como forçam situações extremamente banais ou até mesmo controversas para tentar exaltar os ícones da música mundial. O Cazuza não subia em mesa de bar da Zona Sul porque era gênio, o Renato Russo não dava fora nos amigos porque era diferenciado, o Freddie Mercury não usava bigode porque pensava à frente, sabe? Todos foram gênios indiscutíveis, mas a forma como essa genialidade vinha sendo abordada no cinema foi meio forçada. Nisso, Nosso Sonho brilha com uma naturalidade fascinante.

O brilhantismo da dupla e a forma como eles surgiram são retratados de forma completamente orgânica, criando simpatia e admiração sem precisar forçar. Desde a infância, o Claudinho e o Buchecha se encontravam nas brincadeiras típicas da infância fluminense, e mesmo depois de serem separados pelo tempo, voltam a cruzar caminhos por obra do destino e das consequências de um drama familiar de um deles que, infelizmente, é muito comum nos lares brasileiros até hoje. E como eles entram na música? Bem, pela influência do meio em que estão inseridos e pelo desejo mais sincero de todo adolescente de melhorar de vida e enfim namorar suas amadas. E não pensem que isso é algum demérito. Pode apostar que certamente existe algum diretor por aí que preferiria romantizar essa situação para transformar o desejo do Buchecha de pegar mulher em um traço genial de personalidade ou algo do tipo, mas o diretor Eduardo Albergaria preferiu compreender a essência dos MCs e sua importância para a cena, adaptando essa aura romântica e até mesmo infantil em um filme que trata seus protagonistas com respeito e naturalidade. É de encher os olhos ver o filme trazendo para a tela elementos culturais tão marcantes do Rio de Janeiro, impulsionado pelo otimismo e fé do Claudinho, que é um jovem sonhador extremamente carismático.

Essa dinâmica da dupla, inclusive, é sensacional e funciona com perfeição. Mesmo tendo origens parecidas e convivido desde pequenos, Claudinho e Buchecha são opostos que se completam em uma amizade de marcar época. Enquanto o Claudinho é mais otimista, sonhador e empolgado, o Buchecha é um jovem mais pé no chão, cuja maior aspiração é conseguir um emprego CLT para trazer conforto e segurança financeira para o seu futuro e o de sua família. Porém, quando estão juntos, eles se transformam naqueles amigos dispostos a tudo e capazes de enfrentar qualquer parada para se divertirem e conseguirem terminar bem o dia. E isso funciona em tela não apenas pela direção, mas por uma química sobrenatural dos atores Juan Paiva (Buchecha) e Lucas Penteado (Claudinho). De verdade, é impossível assistir o filme e não se questionar eles são amigos há uns 20 anos ou algo do tipo. E não é uma questão pura de talento, que a dupla tem de sobra, é realmente uma questão de química. Eles sobram em tela e te conquistam com uma amizade verdadeira e um humor típico do Rio de Janeiro.

O longa é conduzido sob a perspectiva do Buchecha, então há um desenvolvimento maior dos dramas do músico, só que traz também uma perspectiva muito pura sobre quem foi o Claudinho e seu papel não apenas na música, mas em sua vida pessoal. Como o próprio Buchecha diz no começo do filme, o Claudinho foi um “Anjo da Guarda” que mudou sua história em diversos momentos. Entretanto, em momento algum o Claudinho assume um papel de coadjuvante. Eles são protagonistas que se complementam, com um servindo de apoio para o outro em vários momentos.

Por se tratar de um filme sobre uma dupla de MCs, seria impossível fazer uma crítica do longa sem abordar a potente trilha sonora. Ela tem composições originais, mas é justamente por trazer a discografia de Claudinho e Buchecha para as telas que se destaca. É impressionante como a dupla foi uma máquina de hits que seguem espetaculares até os dias de hoje. E seguindo o exemplo de Rocketman (2019), a biografia musical de Elton John, o filme não coloca seus atores para dublar as canções. Eles exploram o talento musical de seus protagonistas para fazer com que eles deem sua interpretação para músicas pesadíssimas da dupla, incluindo a que dá nome ao longa. Isso traz mais veracidade para a história e mostra o quanto o trabalho dos atores foi excelente.

Falando sobre o elenco, o time de apoio também merece destaque. Nando Cunha está espetacular como o Seu Claudino, dando grande parte da força dramática do longa com sua atuação. E as surpresas ficam por conta de um time de jovens que ganharam destaque nas redes sociais nos últimos anos e agora recebem essa oportunidade de mostrarem seu talento nos cinemas, como o Boca de 09, Nego Ney, MC Negão da BL, FP do Trem Bala, e Gabriel do Borel. É incrível que eles tenham sido chamados para atuar, porque num cenário em que parece faltar apoio entre artistas, dar essa chance para uma galera que busca iniciar uma carreira no cinema é talvez o maior mérito do projeto.

Por fim, a identidade visual do filme é maravilhosa. O Rio de Janeiro é uma cidade marcante e tem uma estética própria, e o trabalho do time de reconstruir o Rio dos anos 90 beira a perfeição. As entrevistas, os programas de auditório, as camisas dos times nacionais. Tudo perfeitamente recriado para as telonas. O único erro do longa, num geral, é um pequeno deslize de figurino. Há uma cena em que o Claudinho aparece com uma camisa de treino França de 2021. É um deslize bem bobinho que chega a ser divertido, porque a cena em questão acontece em 1996 e tá lá o escudo da França com duas estrelas de campeão mundial, sendo que os franceses só viriam a ganhar sua primeira Copa do Mundo em 1998. Enfim, isso não afeta de forma alguma o nível altíssimo desse projeto, que dá aula na hora de adaptar uma biografia para os cinemas.

Trazendo uma visão diferenciada para um filme biográfico musical, Nosso Sonho é a grande surpresa da temporada e um dos melhores longas do ano. Ele te conquista pela qualidade da história, pela direção competente e pelas atuações fascinantes. E o mais legal é que ele acerta na nostalgia, mas sem usá-la como muleta. É um trabalho extremamente fora da curva que funciona como uma mensagem de amor ao Funk e à cultura nacional, aumentando ainda mais o carinho do povo por Claudinho e Buchecha e seus sucessos atemporais. Um verdadeiro show!

Nosso Sonho está em cartaz nos cinemas de todo o Brasil.

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Pedro Sobreirohttp://cinepop.com.br/
Jornalista apaixonado por entretenimento, com passagens por sites, revistas e emissoras como repórter, crítico e produtor.

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