quinta-feira, março 28, 2024

Crítica | A Casa Que Jack Construiu – Um vazio sórdido, sádico e satírico

Assistir a um filme de Lars Von Trier e esperar leveza é uma das coisas mais contraditórias deste planeta. Já é de entendimento universal que o diretor e roteirista aprecia provocar as pessoas com a sua arte. Para o bem ou para o mal, o cineasta instiga a imoralidade dos seres humanos e destaca o seu pior. Se apreciamos as suas obras Ninfomaníaca Vol.1 e 2 (2013), O Anticristo (2009), Dogville (2003) e Dançando no Escuro (2000), A Casa que Jack Construiu (The House That Jack Built) se distancia de pontos críticos e arroja-se na perversão disparatada.

Como em outros filmes do autor, a perturbação mental é o ponto de partida da narrativa, que se constrói por meio da conversa entre o protagonista e uma voz que o interpela. Este outro, por vezes, faz o papel do público, questionando características pouco críveis da história e, em outros momentos, soa como sua própria consciência. Dividido em cinco incidentes, Jack (Matt Dillon) narra episódios sórdidos da sua vida ao seu interlocutor em uma descarga de misoginia, estupidez, perversidade e jocosidade do seu transtorno obsessivo compulsivo.  

Ao decorrer dos assassinatos cometidos, Jack explica os seus atos como arte por meio de como ele armazena os corpos em um frigorífico num minucioso trabalho de artesanato e fotografia. As referências artísticas surgem na tela em pinturas cubistas, surrealistas, expressionistas como um repertório a ser alcançado a cada tentativa de homicídio.

Se andarmos sobre a racionalidade dos fatos, o filme torna-se intragável, afinal a sordidez nunca foi um espetáculo apreciável. As histórias de serial killer, no entanto, chamam a atenção e atraem o público, as pessoas têm uma espécie de curiosidade e catarse no processo de estudar o comportamento do outro, mas esse outro precisa adequar-se a determinadas regras, mesmo que o seu principal fundamento seja desviá-las.

O seriado Dexter (2006-2013), da Showtime, por exemplo, tinha um protagonista nessa proporção, mas ele tinha princípios – só matava outros assassinos – e, desse modo, era aceito pelo público. Ao decodificar esse mítico relacionamento entre a plateia e o caniceiro, Lars Von Trier torna-se obsceno. A obscenidade, no entanto, faz parte da sua trajetória no cinema e de tantos outros cineastas sem causar estranhamento.

Se o perturbador Encaixotando Helena (1993), de Jennifer Lynch, mostra o terror da mente masculina inconformada por meio da mutilação física, Jack segue o mesmo desprezo pelas mulheres e, apesar de não apenas matar pessoas do sexo feminino, são elas que personificam os seus relatos, salientando situações obtusas e satirizando a violência pelo grau de estupidez.

É grotesca a representação feminina no filme, tanto que o narrador é questionado pelo seu interlocutor sobre os motivos dessa depreciação feminina. Por sua vez, Jack despeja um discurso mais tenebroso sobre o homem ser sempre o criminoso e a mulher, a vítima. Enquanto isso, as suas palavras são ilustradas por obras barrocas, demonstrando o suplício feminino através do tempo. Nesses embates mentais, o narrador palestra sobre arquitetura, engenharia, catedrais e até sobre o processo de decomposição da uva para torna-se um doce vinho. Isso tudo em uma tentativa de explicar-se.

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O filme é todo sob a visão de Jack, portanto, ninguém consegue entendê-lo, superá-lo, ou mesmo ousar um movimento de maior capacidade. Assim, todos são covardemente açoitados, manipulados e displicentes a sua mercê. Em determinado momento, a voz de Jack se confunde com a do próprio diretor em uma sequência de imagens de guerras, genocídio, Hitler, Mussolini e os próprios filmes de Lars Von Trier, enquanto ele fala de si mesmo.

Em seu último relato, Jack está em busca de realizar um experimento o qual prova uma das ações do exército nazista para matar muitos gastando pouca munição. A cena remete ao repugnante A Centopeia Humana (2009), de Tom Six, que flertava com as histórias de experimentos desumanos conduzidos durante a Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, por conta de um erro na compra da bala necessária para o feito, Jack se atrapalha, mata mais gente no caminho e torna-se uma lembrança de Fargo (1996), em que a banalidade da violência gera o escárnio, uma grande característica dos irmãos Coen.  

Após os cinco episódios e duas horas de projeção, o serial killer dá-se conta que não terminou de construir sua casa, pois ele sempre derrubava os pilares em busca do material perfeito. Contudo, seu material favorito sempre esteve no seu frigorífico: os corpos gelados preservados da decomposição. Ao usá-los para construir suas estruturas, ele finalmente consegue atravessar a porta da sua verdadeira moradia.

No epílogo deste percurso macabro, Lars Von Trier mergulha no surrealismo e a voz do interlocutor ganha um rosto (Bruno Ganz) e nome. A partir de então, alguns diálogos são retomados como se o caminho feito por Jack ganhasse, por fim, um rumo. Em uma alegoria das etapas do inferno, em analogia ao livro A Divina Comédia (1320), os dois visitam lugares nas profundezas em busca de uma resposta. 

Em A Casa que Jack Construiu, Lars Von Trier fala de si mesmo e seu complicado relacionamento com a arte e o sadismo, algo que por mais que se explique não faz sentido aos olhares alheios, pois o entendimento de um não perpassa a intenções internas do outro. Enfim, o sortilégio encontra uma saída, mas não uma punição. Ele desaparece na escuridão ao som de Hit the road Jack, de Ray Charles, para encerrar com uma última piada.

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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