Para permanecer vivo, um mito precisa ser contado. Esse é o direcionamento de A Lenda de Candyman, retomada triunfante do slasher tardio O Mistério de Candyman, lançado em 1992, produção que estabelece várias conexões com o seu ponto de partida e desconsidera os equivocados Candyman 2: A Vingança e Candyman 3: Dia dos Mortos. A nova empreitada estabelece diálogos com a produção dirigida por Bernard Rose e atualiza o mito, retomado agora por um viés ainda mais explícito com as celeumas sociais contemporâneas: a gentrificação e o racismo estrutural, desdobrado na costumeira coerção policial cotidiana. dentre outros temas, num filme que pode ser decepcionante para aqueles que buscam um slasher quintessencial, intensamente violento e com uma trilha de corpos numerosa. esmo que as oportunidades para debate sejam mais significativas que o disposto no passado. Focada no estilo e com muitos momentos reflexivos, a cineasta Nia DaCosta gerencia uma equipe focada no esmero estético de seu filme, com alguns momentos autenticamente associados ao estilo slasher, isto é, mortes sangrentas e gritos de pânico, mas a proposta por aqui é ser mais imersivo, carregando na intensidade psicológica.
Produzido em parceria com Jordan Peele, também autor do texto, ao lado de Win Rosenfeld, a equipe de A Lenda de Candyman faz boas assertivas escolhas dramáticas nesta nova incursão, adaptando a história para uma era complexa, cheia de tabus e com o racismo ainda a minar a perspectiva de muitas vidas negras. Como sabemos, Candyman, interpretado por Tony Todd, aqui, numa aparição breve, mas emocionante, é o espírito de Daniel Robitaille, um homem afro-americano assassinado por ter engravidado uma mulher branca. Com a vida ceifada violentamente, uma de suas mãos foi substituída por um gancho, enquanto o seu corpo, besuntado com mel, atraiu as abelhas que terminaram o trabalho sanguinário de homens brancos que jamais aceitariam, na ocasião, um relacionamento interracial. Diante do exposto, contemplamos a jornada de um “vilão” que noutro momento já foi uma vítima. E, num processo de reparação e ajustes históricos, tem a sua história contada numa perspectiva negra, afinal, na versão de 1992, a acadêmica loira e branca interpretada por Virginia Madsen é a porta-voz de sua tragédia.
A proposta, desta vez, é outra. Na lenda, aquele que ousar chamar o nome de Candyman cinco vezes diante do espelho pode atraí-lo e encontrar a morte dolorosa e sanguinária. O mito, tal como a teoria literária nos reforça, precisa ser recontado para evitar cair no esquecimento. E foi o que aconteceu em 1992 e agora retorna em 2021. Na trama, os projetos habitacionais do bairro Cabrini Green mudaram de forma. O espaço, antes destinado aos moradores humildes da região, agora é o ambiente domiciliar de pessoas pertencentes a um nível econômico mais elevado. O destino dos que ali habitavam, anteriormente, não importa para os favorecidos desta lógica capitalista rotineira. Neste local, há uma lenda urbana sobre um assassino sobrenatural que possui um gancho no lugar de uma das mãos, invocado por aqueles que ousam repetir o seu nome cinco vezes no espelho. O filme explica de maneira assertiva essa história ao espectador, por meio de um habilidoso teatro de sombras, nos permitindo compreender o que aconteceu no passado, para melhor adentrar nas propostas reflexivas do presente que retrata a vida de Anthony McCay (Yahya Abdul-Mateen II), um artista que mora com a sua namorada, Brianna Cartwright (Teyonah Parris), num condomínio de luxo.
Anthony começa a atravessar um inesperado bloqueio, enquanto a sua namorada, uma galerista que também enfrenta tensões profissionais, leva o trabalho segurando as pontas para não despencar. As coisas mudam logo na abertura da narrativa. Numa determinada noite, o casal recebe a visita de Troy (Nathan Stewart Jarret), irmão de Brianna, interessado em apresentar o namorado para o casal. Ele resgatará essa história macabra que destaca o racismo numa versão, traduzida na contemporaneidade por outras formas de lidar com os corpos negros massacrados pelo racismo. Com seu fazer artístico estagnado, Anthony se deixa levar pela atmosfera sombria e pela natureza aterrorizante do mito de Candyman, envolvendo-se c descobrindo elos de sua própria vida com a trajetória do mito. Ao trazer elementos desse universo para o seu trabalho, sem saber que neste processo, abriu portais desafiadores, caminhos que não garantem mais a possibilidade de retorno.
Em seu tom de terror social, A Lenda de Candyman também é um filme sobre a gentrificação cada vez mais rotineira e descaradamente violenta em nossa sociedade. E não é coisa apenas dos Estados Unidos não, basta lembrar de incêndios criminosos por aqui, aparentemente conectados com a especulação imobiliária tão ansiada pela elite despreocupada com as vidas que envolvem projetos do tipo. O termo é utilizado para explicar o processo de modificação do espaço urbano, geralmente as áreas periféricas, remodeladas para atender aos interesses imobiliários que transformam esses espaços em centros comerciais ou redutos domésticos para as classes mais favorecidas, na maioria das vezes, desconsiderando os habitantes que geralmente não tem mais opções para essa espécie de diáspora urbana massacrante. Além disso, esta é uma produção também assertiva na abordagem da exploração do corpo e da arte dos afro-americanos, num filme que ganhou novos significados pós George Floyd e intensificação do movimento black lives matter.
Ademais, tendo John Guleserian na direção de fotografia, a narrativa investe em planos e enquadramentos sofisticados, milimetricamente calculados para construir pinturas autênticas em movimento, num projeto de esmero que atravessa um crescente de qualidade visual de sua abertura ao desfecho. Para funcionar tão bem, a condução musical de Robert Aiki Aubrey Lowe se apresenta assertiva e é possível perceber alguns ecos da trilha sonora de Philip Glass para a produção de 1992. Outro ponto de destaque é o design de produção, assinado por Cara Brower, também focado nas peculiaridades do universo de Candyman e dos protagonistas da história, setor importante para a imersão do espectador no contexto narrativo oferecido para a nossa entrada. Em linhas gerais, em A Lenda de Candyman, temos a junção de aspectos estéticos bem-sucedidos, em prol da qualidade audiovisual do filme que traz um desfecho emocionante, construído para fazer suar frio na plateia. Um retorno mais que digno, intenso, cuidadosamente estruturado por realizadores em seus respectivos (e devidos) lugares de fala.