Existe um buraco enorme, profundo, imensurável que fica quando uma vida se esvai. Seja humana ou animal (em alguns casos, até mesmo vegetal), perder alguém deixa sequelas naqueles que ficam. A morte, ainda que seja um assunto não conversado pela maioria das pessoas, faz parte da vida. Mas, claro, há mortes e mortes, e todos nós esperamos que a vida siga seu ritmo natural de eventos, em que as pessoas envelhecem e, então, morrem. Esse é o desejo de muitos, porém, há vidas que são interrompidas por motivos externos, como a violência brutal, e há aquelas, também, que são interrompidas voluntariamente, partindo da própria pessoa – e esse é um assunto pouquíssimo conversado abertamente, mas que serve como tema para o filme brasileiro ‘A Metade de Nós’, que chega a partir dessa semana aos cinemas.
Francisca (Denise Weinberg, da trilogia de filmes ‘De Pernas Pro Ar’) e Carlos (Cacá Amaral, da série ‘Filhas de Eva’) lutam para se adaptar à nova realidade, depois que o filho deles, Felipe, se suicidou. E o dia a dia deles não fica nada fácil, mesmo já tendo passado um tempinho do ocorrido. Francisca tenta se afundar no trabalho, nas aulas que dá na faculdade de Economia, e não pensar no que aconteceu. Já Carlos procura manter viva a memória do filho, fazendo suas coisinhas normalmente, e isso acaba exasperando a esposa, que não entende como ele consegue agir como se nada tivesse acontecido e pede espaço a ele. Sem saída, Carlos vai morar no antigo apartamento do filho, e começa a desvendar quem era aquele filho que, ao que parece, ele mal conhecia – e é nesse momento que conhece Hugo (Kelner Macêdo), vizinho de Felipe que parece ter informações sobre ele. Por sua vez Francisca encontra informações de que o filho se consultava com um psiquiatra, e ela foca toda sua energia em investigar a vida desse profissional, certa de que ele é o responsável por tudo que aconteceu.
De maneira sensível e delicada, posto que não tem pressa em elencar os eventos de seu enredo, ‘A Metade de Nós’ é um filme que vai se construindo junto com os sentimentos de seus protagonistas, à medida que eles mesmos vão se entendendo e entendendo a nova realidade em que vivem. Para tal, o roteiro de Bruno H. Castro junto com o diretor Flavio Botelho (a partir de uma experiência pessoal deste) vai tecendo elementos e ações que fazem parte da jornada comum do luto, como o estado de negação, da raiva, da apatia, da euforia, da perdição. A diferença é que a produção centra seu protagonismo num casal idoso, o que amplifica a dor da perda porque, como diz o personagem Carlos, não há nome para o status de uma pessoa que perdeu um filho.
Apesar de o suicídio ser o pano de fundo do enredo, o longa não se debruça propriamente sobre o assunto; ao contrário, foca sua história em demonstrar o peso que fica na vida dos que permanecem vivos a partir da ausência repentina de alguém que era querido e estava lá até pouco tempo. Esse buraco, enorme, permanece como um abismo até o fim da jornada dos que viveram com a pessoa, mesmo que se esforce a buscar as peças desse quebra-cabeças insolucionável.
Vencedor do prêmio do público da Mostra de São Paulo 2023, ‘A Metade de Nós’ chega aos cinemas como um gesto de empatia a todos os enlutados que não encontram suas dores representadas no cinema.