Toda criatura da natureza possui a sua função biológica, por isso, baratas, aranhas e gafanhotos, por mais medonhos que sejam em seus aspectos visuais, ocupam lugar dentro dos mecanismos das cadeias que engendram a vida em nosso planeta. No caso do horror ecológico ‘A Nuvem‘, os gafanhotos representam a ameaça para os personagens que terão de lidar com a fúria destes insetos historicamente associados a voracidade, destruição, desordem e desequilíbrio, bichos biblicamente mencionados como pragas responsáveis por calamidades expressivas. Há, no entanto, ao longo do desenvolvimento da narrativa dirigida por Just Philippot, elementos mais monstruosos que os insetos de pernas posteriores longas e fortes, próprias para os seus amplos saltos: os seres humanos, figuras dotadas de muita ganância, motivação que transforma a busca pela sobrevivência dos personagens numa alegoria para a nossa relação com o mundo que habitamos, usufruímos e muito abaixo do esperado, conservamos.
Na trama escrita por Jerome Genevray e Franck Victor, Virginie (Suliane Brahim) é uma mãe que cuida sozinha dos filhos Gaston (Raphael Romand) e Laura (Marie Narbonne). Ela precisa lidar com questões econômicas tensas, dentre outros conflitos envolvendo, em especial, a rebeldia e insatisfação constante da filha mais velha. Crise com os vizinhos e estresse ao ter que pagar as principais despesas estão na lista dos problemas que encabeçam a sua listagem cotidiana de desafios. Para conseguir se manter, ela atua numa fazenda e cria gafanhotos para a produção de farinha, além de comercializá-los aos interessados em alimentação com boa dose de proteína. Os problemas começam depois que um acidente doméstico envolvendo um corte considerável em seu braço fará os insetos apresentarem um gosto peculiar por sangue.
Com isso, cada vez mais, num efeito que comparo ao proposto por Clive Baker em ‘Hellraiser‘, os bichos ficam ariscos e precisam de sangue. Tudo começa com pequenas doses e num espiral de intensidade crescente, passa a se tornar uma obrigação diária na dinâmica da procriação, afinal, quanto mais os insetos se reproduzem, satisfeitos com a fonte de alimento fornecida pela dona, maior é o fluxo de caixa. E, com isso, é possível que não haja escapatória para uma cabra de estimação, tampouco o cachorrinho da família. Bobear, será que Virginie descambará para os sacrifícios humanos, tamanho o retorno do investimento? Ao leitor, não entrego nada mais. É preciso ver para crer. Em seus 100 minutos, mais longo que o necessário para o estabelecimento e resolução dos conflitos dramáticos, a equipe de realizadores desenvolve uma narrativa dentro dos esquemas tradicionais do subgênero horror ecológico, mas diferente da maioria dos filmes deste segmento, há foco na dinâmica psicológica dos personagens e nas alegorias com o mal estar contemporâneo acerca da relação entre seres humanos, efeitos climáticos e outras celeumas da natureza que, em alguns casos, revolta-se contra as nossas ações destrutivas.
Antes de ser lançado na plataforma Netflix, ‘A Nuvem‘ correu alguns festivais e lançamentos em outros serviços de streaming e geralmente foi bem recebido pelo público e crítica. Alguns apontamentos diziam que os produtores fizeram com os gafanhotos o que Alfred Hitchcock fez com os pássaros no clássico que também integra o esquema narrativo do subgênero em questão. As impressões, coerentes e nada exageradas, expõe o que de fato há na estrutura dramática do filme, isto é, os bichos a ocupar um lugar ameaçador, mas representativo do comportamento humano, alegorizado por meio da bravura dos seres da natureza selvagem. Ademais, diferente do que geralmente se espera em produções do tipo, os insetos não escapam do viveiro e saem, como num slasher, matando as pessoas e deixando uma trilha de cadáveres e sangue. Há, sim, mortes e alguma histeria, mas a narrativa se mantém um tanto comedida e apesar de não ser sutil nos momentos de maior tensão, trafega por uma via mais psicológica e com menor nível de tensão física, algo que a torna interessante, mas um pouquinho letárgica.