quarta-feira , 20 novembro , 2024

Crítica | A Substância – Demi Moore entrega-se por completo em horror satírico sobre a ditadura da eterna beleza feminina [Cannes 2024]

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Visto no Festival de Cinema de Cannes 2024.

Injeta-se uma substância em uma gema de ovo e segundos depois ela divide-se em duas, porém a segunda é mais apetitosa. Esta é a misteriosa explicação para fantasia horrorífica de A Substância (The Substance), segundo longa de Coralie Fargeat



Com o seu estilo de lentes angulares, tomadas em close e cores vibrantes, a diretora francesa constrói uma divertida e grotesca crítica aos padrões patriarcais de beleza. O mérito do enredo é utilizar dos próprios elementos desse modelo social, mas sem nunca usar as palavras-chaves — e suas intenções  — descaradamente. 

Em contrapartida à sutileza verbal, A Substância apresenta seu escancaramento no corpo dos personagens e no visual em tela. Para dar vida a essa contraposição de valores estéticos e a velhice feminina, a escalação do elenco é certeira. Coralie Fargeat oferece a Demi Moore um belo retorno às telonas para vivenciar dilemas dirigidos à ela mesma como atriz de 60 anos, porém de modo surrealista.

A Substância

Na juventude, Elizabeth Sparkle (Demi Moore) ganha uma estrela da calçada da fama e acompanhamos a passagem do tempo — durante os créditos iniciais do longa — de acordo com as rachaduras, as manchas, os temporais e os lanches deixados sobre o seu nome. Aos 50 anos, a artista perdeu o seu lugar no cinema e acaba de ser retirada da televisão. 

Após sofrer um acidente, uma misteriosa fórmula mágica lhe é oferecida, a pergunta é clara: você gostaria de ter uma versão mais jovem e mais perfeita de você mesma? Dessa maneira, ela topa utilizar a tal substância do título. Das suas costas, assim como Eva da costela de Adão no alegoria bíblica, nasce a sua versão mais jovem, sensual e esteticamente perfeita, auto-batizada Sue (Margaret Qualley). 

A Substância

Para que o procedimento dê certo, basta seguir as regras, assim como em os Gremlins (1984) e, o mais recente, Fale Comigo (2023), contudo os personagens sempre as burlam. Em A Substância, as normais são simples, cada versão tem sete dias acordada, enquanto a outra parte dorme. Não existem duas versões, cada pessoa é apenas uma e ponto. Em outras palavras, cada corpo, seja o velho, seja o novo, não coexistem ao mesmo tempo. 

Ao aproveitar da seu novo apelo sexual e aparência, Sue acaba por querer tomar as rédeas da situação. Ela consegue seu antigo emprego na TV e os homens salivam e dilatam involuntariamente as pupilas diante da sua figura. Como negar este poder da beleza perante as pessoas? Ao voltar ao visual de uma mulher de 50 anos — apesar da atriz aparentar um corpo de uns 20 anos a menos —,  Elizabeth entra em depressão e conta os dias para retornar ao corpo esculpido, apresentando assim uma vida completamente vazia. 

A entrega de Demi Moore é tanta que ela está presente de corpo e alma, desde as diversas cenas de nu frontal, como tantos outros momentos exigentes, grotescos e amedrontadores. Conhecida pelos seus papéis de mocinha em Ghost (1991) e Proposta Indecente (1993), ou de símbolo sexual em Assédio Sexual (1994) e Streaptease (1996), a atriz consegue imprimir o tom certo de desespero cômico e drama excêntrico. 

A Substância

No seu primeiro longa Vingança (2017), Coralie Fargeat esbanjou sangue para todos os lados da tela num delirante drama de perseguição e vingança. Dessa vez, a cineasta confirma a sua assinatura no gore sanguinolento e nos entrega um novo banho de sangue. Enquanto no seu primeiro longa, a protagonista lutava contra os seus abusadores, a nova aventura é baseada no embate consigo mesma e sua impossível aceitação do tempo.

Através de uma fórmula mágica e um duplo de carne e osso, A Substância realmente coloca em perspectiva audiovisual a infinita batalha das mulheres com elas mesmas para aparentarem ser mais bonitas, magras e desejáveis. Por meio do riso, da curiosidade e choque, a obra chama o espectador para reflexão e o debate de como nossa sociedade está adoecida por substância milagrosas, seja ela um botox, um lifting ou uma promessa de mudança.

Como Elizabeth Sparkle, a qual assiste o seu corpo ser despedaçado pelo o crescimento da sua ambição e da vontade de ser amada, A Substância nos reverbera que no fundo tudo o que todos querem é serem amados e desejados. Sem esses dois elementos, as vidas — por vezes, até mesmo as bastantes confortáveis — passam a não fazer mais sentido e a metáfora do enredo é, ao mesmo tempo, um aceno ao mito da bruxa, voltada às mulheres idosas, ao passo que os homens idosos tornam-se sábios no meio social.

A Substância ganhou a Palma de Melhor Roteiro entre 22 títulos na Mostra Competitiva do Festival de Cannes 2024.

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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Com o seu estilo de lentes angulares, tomadas em close e cores vibrantes, a diretora francesa constrói uma divertida e grotesca crítica aos padrões patriarcais de beleza. O mérito do enredo é utilizar dos próprios elementos desse modelo social, mas sem nunca usar as palavras-chaves — e suas intenções  — descaradamente. 

Em contrapartida à sutileza verbal, A Substância apresenta seu escancaramento no corpo dos personagens e no visual em tela. Para dar vida a essa contraposição de valores estéticos e a velhice feminina, a escalação do elenco é certeira. Coralie Fargeat oferece a Demi Moore um belo retorno às telonas para vivenciar dilemas dirigidos à ela mesma como atriz de 60 anos, porém de modo surrealista.

A Substância

Na juventude, Elizabeth Sparkle (Demi Moore) ganha uma estrela da calçada da fama e acompanhamos a passagem do tempo — durante os créditos iniciais do longa — de acordo com as rachaduras, as manchas, os temporais e os lanches deixados sobre o seu nome. Aos 50 anos, a artista perdeu o seu lugar no cinema e acaba de ser retirada da televisão. 

Após sofrer um acidente, uma misteriosa fórmula mágica lhe é oferecida, a pergunta é clara: você gostaria de ter uma versão mais jovem e mais perfeita de você mesma? Dessa maneira, ela topa utilizar a tal substância do título. Das suas costas, assim como Eva da costela de Adão no alegoria bíblica, nasce a sua versão mais jovem, sensual e esteticamente perfeita, auto-batizada Sue (Margaret Qualley). 

A Substância

Para que o procedimento dê certo, basta seguir as regras, assim como em os Gremlins (1984) e, o mais recente, Fale Comigo (2023), contudo os personagens sempre as burlam. Em A Substância, as normais são simples, cada versão tem sete dias acordada, enquanto a outra parte dorme. Não existem duas versões, cada pessoa é apenas uma e ponto. Em outras palavras, cada corpo, seja o velho, seja o novo, não coexistem ao mesmo tempo. 

Ao aproveitar da seu novo apelo sexual e aparência, Sue acaba por querer tomar as rédeas da situação. Ela consegue seu antigo emprego na TV e os homens salivam e dilatam involuntariamente as pupilas diante da sua figura. Como negar este poder da beleza perante as pessoas? Ao voltar ao visual de uma mulher de 50 anos — apesar da atriz aparentar um corpo de uns 20 anos a menos —,  Elizabeth entra em depressão e conta os dias para retornar ao corpo esculpido, apresentando assim uma vida completamente vazia. 

A entrega de Demi Moore é tanta que ela está presente de corpo e alma, desde as diversas cenas de nu frontal, como tantos outros momentos exigentes, grotescos e amedrontadores. Conhecida pelos seus papéis de mocinha em Ghost (1991) e Proposta Indecente (1993), ou de símbolo sexual em Assédio Sexual (1994) e Streaptease (1996), a atriz consegue imprimir o tom certo de desespero cômico e drama excêntrico. 

A Substância

No seu primeiro longa Vingança (2017), Coralie Fargeat esbanjou sangue para todos os lados da tela num delirante drama de perseguição e vingança. Dessa vez, a cineasta confirma a sua assinatura no gore sanguinolento e nos entrega um novo banho de sangue. Enquanto no seu primeiro longa, a protagonista lutava contra os seus abusadores, a nova aventura é baseada no embate consigo mesma e sua impossível aceitação do tempo.

Através de uma fórmula mágica e um duplo de carne e osso, A Substância realmente coloca em perspectiva audiovisual a infinita batalha das mulheres com elas mesmas para aparentarem ser mais bonitas, magras e desejáveis. Por meio do riso, da curiosidade e choque, a obra chama o espectador para reflexão e o debate de como nossa sociedade está adoecida por substância milagrosas, seja ela um botox, um lifting ou uma promessa de mudança.

Como Elizabeth Sparkle, a qual assiste o seu corpo ser despedaçado pelo o crescimento da sua ambição e da vontade de ser amada, A Substância nos reverbera que no fundo tudo o que todos querem é serem amados e desejados. Sem esses dois elementos, as vidas — por vezes, até mesmo as bastantes confortáveis — passam a não fazer mais sentido e a metáfora do enredo é, ao mesmo tempo, um aceno ao mito da bruxa, voltada às mulheres idosas, ao passo que os homens idosos tornam-se sábios no meio social.

A Substância ganhou a Palma de Melhor Roteiro entre 22 títulos na Mostra Competitiva do Festival de Cannes 2024.

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Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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