“Cancelada” antes mesmo do lançamento, a série documental ‘A Vida Depois do Tombo’ não tem autorização para usar a música ‘Tombei’, que inspira o título, para contar a história da rapper Karol Conká após sua eliminação recorde do BBB21. O indício dos problemas de relacionamento da artista com ex-parceiros de trabalho, que impedem a série de usar este e outros hits, permeiam os quatro episódios, sem declarar um certo ou um errado. Aqui, não estão em jogo julgamentos de valor de um lado ou de outro, e a mesma postura é o que move a reflexão do material pela passagem de sua protagonista pelo reality.
Gravado nos dias seguintes à saída de Karoline dos Santos Oliveira da casa do Big Brother Brasil, o documentário parece ser uma versão “ao vivo e a cores” do tal tribunal da internet, do qual ela virou algoz. E reprisa, talvez ironicamente, talvez não, todas as suas idiossincrasias — boas ou ruins.
De um lado, ‘A Vida Depois do Tombo’ expõe todas as atitudes negativas da ex-sister em um telão que literalmente a cerca por todos os lados, escancarando fisicamente a metáfora de que ela não é capaz, ali, de fugir de encarar seus próprios erros. A isso, resta a Karol pedir desculpas, dizer repetidas vezes que se arrepende, chorar, afirmar que, se pudesse, voltaria no tempo e corrigiria o que fez de errado.
Do outro, está a Karol filha de Dona Ana e mãe de Jorge, em casa com a família, a cachorrinha e tentando voltar à vida normal, pedindo aos céus de São Paulo que a chuva limpe a maldade e o julgamento das pessoas para que ela possa seguir em frente.
Com direção de Patrícia Carvalho e Patrícia Cupello, e roteiro de Malu Vergueiro e Valéria Amaral, ‘A Vida Depois do Tombo’ comete o mesmo equívoco do próprio tribunal da internet que parece ter tentado emular. Dedicado e muito feliz em sua pesquisa das origens da cantora curitibana, ele busca várias vertentes de narrativa. Mas assim como as threads de Twitter e textos raivosos do Instagram, não se debruça de verdade sobre nenhuma delas. A exposição, talvez preocupada em mostrar os “dois lados” — onde a Karol errou na casa e onde ela “tem uma carreira bem bonita aqui fora” — acaba ficando superficial pelo não comprometimento.
Existem, portanto, dois materiais dentro de um, e o problema é que eles pouco conversam entre si e trazem um resultado um tanto esvaziado. Quando se dispõe a contar a história de como Karol Conká saiu de Curitiba e alcançou a repercussão nacional e mundial que já tinha antes do programa, superou a pobreza, o racismo e o machismo para ganhar dinheiro vendendo sua arte e cantando suas lutas, faz um trabalho competente de mostrar sua riqueza complexa. Mais do que isso, busca não desassociar todas as vivências sobre as quais ela compõe de quem ela realmente é.
Desta forma, o documentário traz depoimentos da mãe e do filho de Karol, além de colegas de trabalho e do ex-namorado, o pai de Jorge, colocando sob uma perspectiva mais realista as explosões de humor e os comentários incômodos feitos pela rapper no confinamento. Ana diz que a filha é “bem brava”, mas que estava diferente dentro da casa, enquanto amigos e colegas de trabalho também deixam claro que a relação com a cantora permanece e que ela recebeu o devido acolhimento de quem a rodeava, ainda que alguns admitam terem tomado um certo susto.
Por outro lado, assuntos que poderiam ter sido explorados com mais clareza deixam apenas algumas informações no ar e outras coisas no campo do subjetivo. O produtor e empresário KondZilla cita que observou alguns artistas que, na visão dele, aproveitaram o momento para aumentar o coro de críticas a Karol Conká e capitalizar em cima do movimento vendendo publicidade. A declaração poderia ter sido ponte para uma reflexão maior sobre cultura de redes sociais e comportamento de manada, mas ficou apenas jogada como uma peça semi-solta desse quebra-cabeças gigantesco.
Em outros momentos, o documentário traz à tona conflitos com figuras como Flora Matos, DJ Zegon, DJ Nave Beatz e Drica Lara, mas faz isso para que Karol possa contar suas versões dos fatos, sem que provocar qualquer conversa com a rejeição da cantora no reality global — que veio, a princípio, do público, e não de outros artistas. Boatos de uma “personalidade difícil” nos bastidores da música são brevemente explicados de forma circunstancial, e toda a cobertura midiática das possíveis consequências negativas do BBB para a sua carreira, seja ela de grandes veículos ou de repórteres de celebridades, é tratada como “fake news”.
Até mesmo a ‘cultura do cancelamento’, da qual Karol foi vítima, mas também sujeito agente, é vista apenas como o pontapé inicial, e ‘A Vida Depois do Tombo’ não enxerga necessidade de mergulhar no que realmente é, ou não, o cancelamento — ainda mais diante desta realidade em que os prejuízos financeiros, cancelamentos de contrato e desavenças na equipe são expostos como pura boataria.
Isso não quer dizer que Karol deva ser alvo eterno de ódio coletivo e sofrer eternamente pelos seus pecados. Porém, embora o documentário se disponha a mostrar como a cantora está lidando com a rejeição e com a necessidade de refletir sobre seus erros, ele alcança dois resultados: minimizar a grande comoção pela saída de Karol a uma histeria coletiva sem fundamento e dar mais munição aos odiadores para que continuem odiando.
Em dois momentos, o material toca em pontos extremamente pertinentes, e talvez o resultado teria sido melhor se tivesse se debruçado com mais calma sobre eles. Quando a empresária Eliane Dias, que trabalha com os Racionais MCs, aborda o racismo estrutural, expõe que Karol foi vítima de ataques racistas por pessoas supostamente indignadas com seu tratamento a Lucas Penteado. Aqui, o documentário desperdiça mais uma oportunidade de transpor este caso a algo que fale sobre um assunto verdadeiramente universal, que é a perda desta linha tênue entre o Réu e a Acusação no Tribunal da Internet.
Em outro momento, um dos mais fortes dos quatro episódios, Karol fala sobre a morte precoce do pai, vítima do alcoolismo, quando ela tinha 14 anos. A cantora faz um paralelo entre a sua memória traumática familiar e a maneira como reagiu a Lucas na casa em Curicica, sobretudo quando ele bebia nas festas.
É doloroso de se assistir, e o depoimento de Karol é extremamente delicado e genuíno. Mas, sem o contraponto do ator, acaba virando um relato unilateral.
O reencontro entre os dois, aliás, tratado como clímax por toda a série, não é realmente o clímax desejado em proporções, e apenas obriga Karoline a, mais uma vez, pedir desculpas. Ela o faz exaustivamente durante todo o documentário, enquanto a câmera observa de forma quase ameaçadora, dizendo sem dizer que o melhor a fazer, agora, é realmente pedir desculpas dezenas de vezes e chorar.
Logo nos primeiros minutos do primeiro episódio, Karol reflete: “As pessoas acham que, pra gente se arrepender, a gente tem que aparecer definhando na frente das câmeras. Chorando, implorando, usando uma roupa muito simples, aparecer toda feia pra daí convencer o povo de que: ‘Sim, eu estou arrependida’.” [sic]
Apesar de ter consciência disso, o documentário muitas vezes parece ter um prazer sádico em pender para este lado — exceto, é claro, que Karol nunca deixa de se vestir como uma elegante vilã de desenho animado da Disney, no melhor dos sentidos. Quando ela precisa refletir falando com as paredes sobre a recusa de Carla Diaz e Arcrebiano de se encontrarem com ela, é como se estivesse realmente implorando por perdão a um deus abstrato, sem a alternativa de se arrepender e seguir em frente. O que mais ela pode fazer além disso?
Apesar de ter um material rico em mãos com a história da carreira de Conká, ‘A Vida Depois do Tombo’ peca na pressa de aproveitar a cauda longa do BBB 2021. Ao tentar resolver a crise de imagem da rapper curitibana antes de as chamas se apagarem completamente, acaba reacendendo a fogueira. Assim como Lucas Penteado e o público, Karol merece seguir em frente. Para isso, é preciso tempo.