Quando David Fincher lançou o suspense erótico ‘Garota Exemplar’, voltou a ganhar a atenção do mundo ao entregar uma narrativa extremamente competente, construindo uma atmosfera agonizante guiada por performances irretocáveis de Rosamund Pike e Ben Affleck. O filme, considerado um dos vários pontos altos da carreira do diretor, reacendeu nosso apreço por obras do gênero e auxiliou inúmeros realizadores a criarem suas próprias investidas – algumas dando certo, outras falhando em cumprir com o prometido.
Nos últimos meses, chegou a vez do conhecido Adrian Lyne, nome por trás do clássico ‘Atração Fatal’, retornar a esse mundo com o ambicioso thriller ‘Águas Profundas’. A história, baseada no romance homônimo de Patricia Highsmith (sim, a mesma escritora que deu vida ao drama ‘O Preço do Sal’), acompanha um casal complexo que posa dentro de uma esfera de perfeição incomparável apenas para mascarar os defeitos gritantes que destilam dentro de casa. De um lado, temos Vic Van Allen (Ben Affleck), um psicótico e tóxico homem que não consegue deixar sua esposa ir embora, mesmo com um casamento em frangalhos; de outro, a insana Melinda Van Allen (Ana de Armas), que faz de tudo para incutir qualquer sentimento dentro de Vic que a liberte das amarras de uma prisão sem grades – ainda que tenha ressalvas por conta da filha, Trixie (Grace Jenkins), que sabe que algo está errado. Entretanto, além dos problemas familiares, o casal enfrenta as pulsões de um ciúme descontrolado que deixa um rastro de destruição por onde passam.
Ou ao menos é essa a ideia que Lyne quer passar.
Fazendo uma pequena volta à supracitada magnum opus do diretor, que trouxe nomes como Michael Douglas e Glenn Close às telonas, apenas nos recordamos de como o enredo contribuiu para uma tensão psicológica de tirar o fôlego – cujo resultado gerou controvérsias à época de seu lançamento, apenas para ser redescoberto como uma subestimada joia do cinema norte-americano. Por essa razão, a construção de ‘Águas Profundas’ nos cativa por uma premissa interessante e que, apesar de ter sido contada inúmeras vezes nas últimas décadas, poderia apresentar algo de novo. O desenlace, porém, rema na direção contrária e se rende a um amontoado de inflexões vazias e um condenável pedantismo identitário que não faz o menor sentido e que culmina em uma gigantesca frustração cinematográfica.
Os problemas se iniciam logo com a construção dos personagens principais, cujas incredíveis motivações deixam claro que não pretendem ir a lugar nenhum. Vic a representação máxima de um machismo estrutural que o impede de aceitar a derrota, preferindo ver a esposa o traindo com outros do que deixá-la livre para ser quem é; Melinda, por sua vez, se engolfa em noitadas regadas a bebida e a casos românticos sexuais para escapar da realidade a que está presa, vendo seus sonhos se desmantelarem quando Vic resolve ir atrás dos “amigos” que faz no meio do caminho com ameaças de violência física e morte. Entretanto, não há qualquer sinal que indique que esse nefasto organismo irá mudar – e nossas suspeitas se confirmam quando, depois de duas horas de puro torpor estático, absolutamente nada acontece.
Affleck e Armas carregam papéis de considerável aceitação por parte do público e da crítica – e a jovem atriz, fazendo um estrondoso sucesso com ‘Entre Facas e Segredos’ e ‘007 – Sem Tempo para Morrer’, já é uma das apostas para os próximos anos. É por essa razão que não conseguimos compreender como nem eles salvam o longa-metragem de ser um desperdício de tempo, restritos a um roteiro que tenta entregar mais do que pode e que se afoga em metáforas vencidas e reviravoltas monótonas. Os atos da história se confundem em cenas picotadas, coladas como uma colcha de retalhos sem padrão definido e que não aproveita sequer um aspecto de seu argumento.
Os personagens coadjuvantes também não fazem muita diferença dentro da arquitetura construída: Tracy Letts dá vida ao roteirista Don Wilson, que suspeita das atitudes homicidas de Vic e tem um desfecho tão ridículo quanto seu arco; Kristen Connolly interpreta Kelly Wilson, que cede aos encantos de Vic apenas para desaparecer de cena como um pedaço de plástico descartável; Finn Wittrock, encarnando Tony Cameron, não aparece tempo o suficiente para que nos importemos com ele, tornando-se uma das vítimas de Vic depois de se envolver com Melinda; e, até agora, não consegui entender a obsessão de Vic por criar lesmas – talvez uma simbologia falha de seu ego destruído e de sua falta de afeto.
O elemento mais agonizante de ‘Águas Profundas’ é, de fato, sua total incapacidade de perceber o quão presunçoso é. Ele se mascara como um suspense inteligente, mas se rende a uma prolixidade cansativa que não tem nada de original a nos mostrar – nem mesmo percebendo que, sem as fórmulas que seguram suas fracas bases, não conseguiria nem ao menos ver a luz do dia. Logo, se você procura por um suspense, aconselho que vá busca-lo em outro lugar, bem longe da ilusória pretensão que Lyne resolveu criar.