sexta-feira , 22 novembro , 2024

Crítica | Atlanta – 2ª temporada: Um manifesto impecável sobre marginalização e subjugação dos negros

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Muitas tradições nascem em virtude de seus contextos sociais correspondentes. Em uma sociedade onde o negro é gradativamente reduzido ao seu tom de pele, sendo consumido pelas circunstâncias que um regime opressor caucasiano promoveu, alguns hábitos tão naturais se fazem necessários. O instinto de sobrevivência se mescla com o culturalismo da raça e neste emaranhado onde busca-se compreender a origem da marginalização de um povo, Atlanta entrega uma segunda temporada cheia de maneirismos, críticas profundas, alfinetadas pontuais, atuações incríveis e uma narrativa perspicaz e inteligente, que talvez só a mente crítica e polida de Donald Glover poderia conceber.



Com apenas 34 anos, Glover é um showman absolutamente completo. Além de atuar, ele é produtor, roteirista, diretor, compositor, humorista e inclusive DJ. Com uma mente ávida e incansável, ele trouxe os anseios da comunidade negra em uma trama que traz um humor ácido e muitas vezes doloroso de absorver. Aqui, ele é regado pela violência que permeia o gueto, a ostentação como um instrumento de autodefesa contra o julgamento alheio e a criação inerentemente fundamentada na defensiva, em virtude de uma história que revela o abuso de negros por meio de movimentos segregacionistas que atravessam os séculos e décadas, firmados pelos Confederados e consolidados por um racismo social impregnado em plena era contemporânea.

O novo ciclo segue o mesmo viés de seu antecessor, com uma narrativa linear que caminha livremente, passeando pela apatia de Earn (Glover), um homem brilhante e inteligente, sucumbido por um fracasso criado por si próprio, que tenta enterrá-lo em sonhos que parecem jamais tomar forma. E à medida que a série orbita em torno de seu autor, os personagens que o cercam crescem na mesma proporção. Surpreendentemente, o protagonista continua cedendo espaço para todos crescerem, desenvolvendo a trama de forma madura e sem estrelismo, se distanciando muitas vezes de episódios inteiros. Conforme acompanhamos o rapper Paper Boi (Brian Tyree henry) construindo sua carreira sem tanto esforço, divagamos também nos devaneios de Darius (Lakeith Stanfield), um homem totalmente aquém ao mundo, cercado por questões existenciais, em uma contraditória aceitação de si mesmo. Com personagens tão diversos, a temporada aborda a complexa dinâmica das comunidades negras, em virtude de tudo que lhe foi imposto.

Ainda que os direitos civis sejam garantidos e que as leis de Jim Crow sejam apenas uma terrível memória do passado, os tempos atuais trazem manchas profundas jamais retiradas. Em uma época onde negros continuam sendo mortos por saírem de casa trajando moletons largos, com capuzes que cobrem os cabelos, a violência gratuita nunca pareceu tão vigente. E dentro desse cenário, a sobrevivência ganha novos holofotes e explicações densas, que vasculham a história dos afro americanos, encontrando raízes no racismo mais profundo, aquele que todos acham ter sido vencido com o fim de movimentos perversos como a Ku Klux Kan. Em episódios que tratam sobre a apropriação cultural e até mesmo física dos negros, Atlanta alfineta essa grande antítese que é os Estados Unidos, celebrando as injeções para criar curvas voluptuosas em mulheres brancas, os preenchimentos de lábios, as unhas de fibra em formato, mas rejeita a beleza da mulher negra.

A produção original da Fox vai ainda mais além, ao tratar das durezas dos negros que querem fazer música no país, cercados por produtores caucasianos que muitas vezes tentam se apropriar do talento de jovens do gueto por meros fins lucrativos. Algo semelhante a Jerry Heller e seu histórico com o grupo NWA. Atlanta expande seus questionamentos de forma mais abrangente, fazendo com que todos – independente de raça – se identifiquem com os assuntos. Neste diálogo aberto, o relacionamento interracial ganha uma alfinetada profunda e genuína, que ao mesmo tempo que defende a miscigenação entre povos, pontua uma falha profunda na forma como a beleza negra é vista pelo mundo. O episódio 9 vai no âmago do problema, com um desafio feito por uma bela negra de cabelos cacheados. Digite ‘beautiful woman’ no Google imagens e depois volte aqui para conversamos.

O mesmo capítulo em questão ainda trata sobre a famosa cultura da celebridade, ao trazer uma jornada interminável de beldades negras convidadas para um festa do rapper Drake. A busca pelo músico é infindável e frustrante, sendo ironizada e criticada pela sede mundial de se projetar como alguém relevante e constantemente feliz nas redes sociais. A plasticidade de vender uma vida perfeita e sem flagelos é o calcanhar de Aquiles de todos e ganha uma abordagem astuta e impecável.

E em uma temporada que esfrega na cara o preconceito racial que um negro com dinheiro vivo pode sofrer – sendo repetidas vezes acusado de roubo (imagina um afrodescendente bem sucedido? Capaz!), a série exibida pelo FX consegue surpreender a cada novo capítulo, guardando as melhores histórias para os seus dois últimos episódios. Em ‘Fubu’, o ápice da marginalização da negritude ganha um manifesto chocante, em uma narrativa inicialmente inofensiva, contada pela rotina escolar do pequeno Earn. Nela, vemos o quanto nada mudou, em meio à terrível conformidade de que para um negro na América (e porque não no mundo?), as roupas definem seu caráter. E em sua finale, os reflexos de uma vida regada à pressões sociais ganham proporções quase bíblicas, em um episódio memorável que solidifica a necessidade de proteção mútua que a própria cultura negra criou para viver nesse mundo cão.  

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Com apenas 34 anos, Glover é um showman absolutamente completo. Além de atuar, ele é produtor, roteirista, diretor, compositor, humorista e inclusive DJ. Com uma mente ávida e incansável, ele trouxe os anseios da comunidade negra em uma trama que traz um humor ácido e muitas vezes doloroso de absorver. Aqui, ele é regado pela violência que permeia o gueto, a ostentação como um instrumento de autodefesa contra o julgamento alheio e a criação inerentemente fundamentada na defensiva, em virtude de uma história que revela o abuso de negros por meio de movimentos segregacionistas que atravessam os séculos e décadas, firmados pelos Confederados e consolidados por um racismo social impregnado em plena era contemporânea.

O novo ciclo segue o mesmo viés de seu antecessor, com uma narrativa linear que caminha livremente, passeando pela apatia de Earn (Glover), um homem brilhante e inteligente, sucumbido por um fracasso criado por si próprio, que tenta enterrá-lo em sonhos que parecem jamais tomar forma. E à medida que a série orbita em torno de seu autor, os personagens que o cercam crescem na mesma proporção. Surpreendentemente, o protagonista continua cedendo espaço para todos crescerem, desenvolvendo a trama de forma madura e sem estrelismo, se distanciando muitas vezes de episódios inteiros. Conforme acompanhamos o rapper Paper Boi (Brian Tyree henry) construindo sua carreira sem tanto esforço, divagamos também nos devaneios de Darius (Lakeith Stanfield), um homem totalmente aquém ao mundo, cercado por questões existenciais, em uma contraditória aceitação de si mesmo. Com personagens tão diversos, a temporada aborda a complexa dinâmica das comunidades negras, em virtude de tudo que lhe foi imposto.

Ainda que os direitos civis sejam garantidos e que as leis de Jim Crow sejam apenas uma terrível memória do passado, os tempos atuais trazem manchas profundas jamais retiradas. Em uma época onde negros continuam sendo mortos por saírem de casa trajando moletons largos, com capuzes que cobrem os cabelos, a violência gratuita nunca pareceu tão vigente. E dentro desse cenário, a sobrevivência ganha novos holofotes e explicações densas, que vasculham a história dos afro americanos, encontrando raízes no racismo mais profundo, aquele que todos acham ter sido vencido com o fim de movimentos perversos como a Ku Klux Kan. Em episódios que tratam sobre a apropriação cultural e até mesmo física dos negros, Atlanta alfineta essa grande antítese que é os Estados Unidos, celebrando as injeções para criar curvas voluptuosas em mulheres brancas, os preenchimentos de lábios, as unhas de fibra em formato, mas rejeita a beleza da mulher negra.

A produção original da Fox vai ainda mais além, ao tratar das durezas dos negros que querem fazer música no país, cercados por produtores caucasianos que muitas vezes tentam se apropriar do talento de jovens do gueto por meros fins lucrativos. Algo semelhante a Jerry Heller e seu histórico com o grupo NWA. Atlanta expande seus questionamentos de forma mais abrangente, fazendo com que todos – independente de raça – se identifiquem com os assuntos. Neste diálogo aberto, o relacionamento interracial ganha uma alfinetada profunda e genuína, que ao mesmo tempo que defende a miscigenação entre povos, pontua uma falha profunda na forma como a beleza negra é vista pelo mundo. O episódio 9 vai no âmago do problema, com um desafio feito por uma bela negra de cabelos cacheados. Digite ‘beautiful woman’ no Google imagens e depois volte aqui para conversamos.

O mesmo capítulo em questão ainda trata sobre a famosa cultura da celebridade, ao trazer uma jornada interminável de beldades negras convidadas para um festa do rapper Drake. A busca pelo músico é infindável e frustrante, sendo ironizada e criticada pela sede mundial de se projetar como alguém relevante e constantemente feliz nas redes sociais. A plasticidade de vender uma vida perfeita e sem flagelos é o calcanhar de Aquiles de todos e ganha uma abordagem astuta e impecável.

E em uma temporada que esfrega na cara o preconceito racial que um negro com dinheiro vivo pode sofrer – sendo repetidas vezes acusado de roubo (imagina um afrodescendente bem sucedido? Capaz!), a série exibida pelo FX consegue surpreender a cada novo capítulo, guardando as melhores histórias para os seus dois últimos episódios. Em ‘Fubu’, o ápice da marginalização da negritude ganha um manifesto chocante, em uma narrativa inicialmente inofensiva, contada pela rotina escolar do pequeno Earn. Nela, vemos o quanto nada mudou, em meio à terrível conformidade de que para um negro na América (e porque não no mundo?), as roupas definem seu caráter. E em sua finale, os reflexos de uma vida regada à pressões sociais ganham proporções quase bíblicas, em um episódio memorável que solidifica a necessidade de proteção mútua que a própria cultura negra criou para viver nesse mundo cão.  

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