sexta-feira , 27 dezembro , 2024

Crítica | Atravessa a Vida – João Jardim volta a olhar a Juventude Brasileira e a jornada do ENEM

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Dezesseis anos atrás, João Jardim colocou em evidência as salas de aulas e corredores das escolas brasileiras entre Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Com depoimento tocantes e chocantes, Para o Dia Nascer Feliz  (2005) é um documentário magistral sobre a juventude brasileira, ao lado de Meninas (2006), de Sandra Werneck. Agora, o documentarista nos leva ao terceiro ano de uma escola pública em Simão Dias, no interior do Sergipe, em Atravessa a Vida. Lançada dia 14 de janeiro nos cinemas, a obra foi filmada durante o tumultuado 2018. 

Com apenas três entrevistas, mas diversos personagens pontuais, o filme é uma observação do desenrolar de um ano de preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). A câmera segue os alunos do ponto de ônibus às carteiras da escola, na qual eles passam grande parte do dia. Nesta conjuntura, os professores e a diretora são secundários, pois o mais importante na narrativa é enxergar o relacionamento que eles estabelecem com os alunos e o local de ensino. 



Em um primeiro momento, a aula de filosofia é o campo de discussão sobre o papel do indivíduo na sociedade. Assim, coloca-se em evidência a questão que todo estudante do ensino médio precisa lidar: Qual profissão devo seguir? Alguns declaram o seu desejo de ofício como uma opção a ser escolhida para o vestibular. Outros apresentam dúvidas sobre o seria um papel a desempenhar socialmente. Observar os alunos em sala, para alguém que já saiu dela há alguns anos, é ser transportada para um ambiente seguro de debate.

Dentro de quatro paredes, os professores escutam os alunos e esses mantêm a audição atenta aos companheiros de redoma. Do lado de fora, a conversa é diferente, as angústias são elevadas e a imprecisão do diálogo é sentida. Dos professores, por vezes, os alunos recebem a atenção e o acolhimento ausente em casa. Os abandonos familiares são frequentes nas narrativas dos jovens. Ou seja, existe uma crise parental no ar e, talvez, seja um reflexo social do início do século XXI. 

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Atravessa a Vida é um recorte da juventude em construção. Ao observar uma professora a interpretar a letra da música Pais e Filhos, de Renato Russo, e perceber que os adolescentes sentem-se compreendidos, é possível sentir o efeito atemporal da arte. Ou seja, as questões existenciais mudam de barco, mas continuam a navegar nos mesmos mares. Assim como em High School (1968), do grande documentarista Frederick Wiseman, João Jardim coloca a questão da esperança no futuro como personagem. 

Se de um lado, os professores se esforçam para passar um conteúdo propício a entrada desses jovens ao nível superior; por outro, esses adolescentes encaram sair dos muros da escola como uma fase indefinida e assustadora. Entre a questão psicológica e a pragmática, isto é, o “saber o que se quer” e “fazer o necessário para consegui-lo”, o documentário também aborda a motivação. Neste sentido, não é apenas o desejo de continuar a estudar, mas a vontade de continuar a viver. 

Conversar sobre pena de morte, abordo e depressão são debatidas e cria-se um espaço de troca de observações, ideias e, consequentemente, abertura a mudanças sociais. Em 2018, o movimento “escola sem partido” esteve em evidência na plataforma do atual presidente. O “sem partido” seria  “sem discussão”, isto é, uma lógica militar de comando e obediência. Em contrapartida, é bonito ver a narrativa livre do desencadeamento de ideias dos adolescentes.

Por exemplo, uma jovem pede a palavra e diz algo como: “eu sou uma mulher, negra, pobre e nordestina, que hoje tenho a condição de estudar e chegar à universidade por meio diversas iniciativas públicas, como eu vou retroceder e ser contra as ações que me deram a oportunidade de estar aqui?” Tal como as renovações aos arredores da escola, a construção social é interminável e cheia de barulhos e perturbações. Desse modo, o diretor compõe uma mise-en-scène de desordem para fazer eclodir da turbulência a resolução de um passo ao futuro.

Ao final dessa trajetória, Atravessa a Vida acompanha aqueles que conseguiram alcançar o ensino superior e os seus primeiros ao bacharelado. A travessia é completa para uns, para outros ela continua; e para terceiros ela recomeça todos os dias. É o ciclo da vida. Entre lágrimas, poemas, discussões, o ensino médio é a porta para os jovens brasileiros encontrarem os seus papéis sociais, tendo como principal alternativa o sucesso no ENEM. Entretanto, algumas funções sociais imprescindíveis jamais passaram pelos bancos da universidade, ou seja, são naquelas cadeiras juvenis que elas se formam.

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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Dezesseis anos atrás, João Jardim colocou em evidência as salas de aulas e corredores das escolas brasileiras entre Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Com depoimento tocantes e chocantes, Para o Dia Nascer Feliz  (2005) é um documentário magistral sobre a juventude brasileira, ao lado de Meninas (2006), de Sandra Werneck. Agora, o documentarista nos leva ao terceiro ano de uma escola pública em Simão Dias, no interior do Sergipe, em Atravessa a Vida. Lançada dia 14 de janeiro nos cinemas, a obra foi filmada durante o tumultuado 2018. 

Com apenas três entrevistas, mas diversos personagens pontuais, o filme é uma observação do desenrolar de um ano de preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). A câmera segue os alunos do ponto de ônibus às carteiras da escola, na qual eles passam grande parte do dia. Nesta conjuntura, os professores e a diretora são secundários, pois o mais importante na narrativa é enxergar o relacionamento que eles estabelecem com os alunos e o local de ensino. 

Em um primeiro momento, a aula de filosofia é o campo de discussão sobre o papel do indivíduo na sociedade. Assim, coloca-se em evidência a questão que todo estudante do ensino médio precisa lidar: Qual profissão devo seguir? Alguns declaram o seu desejo de ofício como uma opção a ser escolhida para o vestibular. Outros apresentam dúvidas sobre o seria um papel a desempenhar socialmente. Observar os alunos em sala, para alguém que já saiu dela há alguns anos, é ser transportada para um ambiente seguro de debate.

Dentro de quatro paredes, os professores escutam os alunos e esses mantêm a audição atenta aos companheiros de redoma. Do lado de fora, a conversa é diferente, as angústias são elevadas e a imprecisão do diálogo é sentida. Dos professores, por vezes, os alunos recebem a atenção e o acolhimento ausente em casa. Os abandonos familiares são frequentes nas narrativas dos jovens. Ou seja, existe uma crise parental no ar e, talvez, seja um reflexo social do início do século XXI. 

Atravessa a Vida é um recorte da juventude em construção. Ao observar uma professora a interpretar a letra da música Pais e Filhos, de Renato Russo, e perceber que os adolescentes sentem-se compreendidos, é possível sentir o efeito atemporal da arte. Ou seja, as questões existenciais mudam de barco, mas continuam a navegar nos mesmos mares. Assim como em High School (1968), do grande documentarista Frederick Wiseman, João Jardim coloca a questão da esperança no futuro como personagem. 

Se de um lado, os professores se esforçam para passar um conteúdo propício a entrada desses jovens ao nível superior; por outro, esses adolescentes encaram sair dos muros da escola como uma fase indefinida e assustadora. Entre a questão psicológica e a pragmática, isto é, o “saber o que se quer” e “fazer o necessário para consegui-lo”, o documentário também aborda a motivação. Neste sentido, não é apenas o desejo de continuar a estudar, mas a vontade de continuar a viver. 

Conversar sobre pena de morte, abordo e depressão são debatidas e cria-se um espaço de troca de observações, ideias e, consequentemente, abertura a mudanças sociais. Em 2018, o movimento “escola sem partido” esteve em evidência na plataforma do atual presidente. O “sem partido” seria  “sem discussão”, isto é, uma lógica militar de comando e obediência. Em contrapartida, é bonito ver a narrativa livre do desencadeamento de ideias dos adolescentes.

Por exemplo, uma jovem pede a palavra e diz algo como: “eu sou uma mulher, negra, pobre e nordestina, que hoje tenho a condição de estudar e chegar à universidade por meio diversas iniciativas públicas, como eu vou retroceder e ser contra as ações que me deram a oportunidade de estar aqui?” Tal como as renovações aos arredores da escola, a construção social é interminável e cheia de barulhos e perturbações. Desse modo, o diretor compõe uma mise-en-scène de desordem para fazer eclodir da turbulência a resolução de um passo ao futuro.

Ao final dessa trajetória, Atravessa a Vida acompanha aqueles que conseguiram alcançar o ensino superior e os seus primeiros ao bacharelado. A travessia é completa para uns, para outros ela continua; e para terceiros ela recomeça todos os dias. É o ciclo da vida. Entre lágrimas, poemas, discussões, o ensino médio é a porta para os jovens brasileiros encontrarem os seus papéis sociais, tendo como principal alternativa o sucesso no ENEM. Entretanto, algumas funções sociais imprescindíveis jamais passaram pelos bancos da universidade, ou seja, são naquelas cadeiras juvenis que elas se formam.

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Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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