domingo , 22 dezembro , 2024

Crítica | Beyoncé prova novamente que é uma artista imbatível com o majestoso ‘Black Is King’

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“Preta é a cor da pele do meu verdadeiro amor”.

Essa poderosa frase proferida no início de Black Is King é a amálgama de tudo que Beyoncé Knowles-Carter ousa propor. Mais do que isso, o discurso do qual uma das maiores artistas da atualidade e uma das principais porta-vozes da comunidade afrodescendente se vale atravessa gerações em um pastiche irretocável que celebra a importância da ancestralidade e de como a cultura africana se faz mais presente do que nunca na indústria mainstream – não do jeito que pensamos, e sim de modo a se livrar das amarras eurocêntricas e a glorificar uma riqueza artística que passa longe de nossos olhos.



Desde que Beyoncé resolveu deixar para trás seu legado na música pop ainda em 2013, ela alcançou uma maturidade criativa que ninguém poderia imaginar. Seja com seu álbum homônimo, com ‘Lemonade’ ou com suas apresentações fundidas no icônico documentário ‘Homecoming’, a cantora e compositora abraçou suas raízes de forma absoluta e nunca mais as deixou ir embora. E, seguindo os passos de sua participação do live-action de O Rei Leão, que encantou públicos ao redor do mundo, estava na hora de ela fazer história mais uma vez com sua própria releitura do clássico filme. Mas não da forma que esperaríamos, e sim trazendo a trágica obra arquitetada pelos estúdios Walt Disney ao complexo conflito entre o passado, o presente e o futuro – principalmente no tocante aos obstáculos enfrentados pelos negros.

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Em uma comovente jornada sinestésica e coming-of-age, a artista não se retém em nenhum momento: cada cena que constrói é uma joia audiovisual, seja para nos presentear com os diversificados panoramas do continente africano fora do espectro panfletário, seja para nos chocar com irreverências cênicas e reviravoltas que fogem do convencionalismo, arrancando metáforas de um âmago marcado pela amargura e pela necessidade de gritar. O traslado imagético que transpõe para breves 85 minutos retrai-se e expande-se com naturalidade aplaudível, dando um significado único ao que entendemos como “multiculturalismo”. Mas não se engane: apesar da bonança promovida pela atmosfera do longa-metragem, suas sequências são carregada com críticas veladas e ironias mascaradas que denunciam o que precisa ser denunciado – e o que já deveria ter entrado como pauta de discussão há muito tempo.

Quando pensamos em ancestralidade africana, somos logo arremessados para os enviesados livros de história embebidos em visões imperialistas e em uma perspectiva unidimensional, ou seja, que não engloba todos os lados de uma mesma narrativa. Aqui, deseja-se (e consegue-se, em grande parte do filme) mudar isso: suas escolhas são pungentes e delineadas com clareza interlocutória invejável, reflexo de uma mente que nunca se deixou levar pelos outros. Não é surpresa que a composição estética seja ministrada com cautela, dando vida a progressões narcóticas, tanto musicais quanto visuais, deixando-se oscilar pelo tempo que for pedido.

Black Is King tem como principal artifício a mistura cultural: Beyoncé, liderando um grupo diverso de pessoas que tiveram suas histórias apagadas, emerge como Cleópatra e Hathor, como Maria e Madona, como mãe e filha. Ela é dotada de um emblema que não se reduz apenas à sua presença, mas espalha-se como símbolo de renascimento e de permanência que ninguém pode apagar. E, enquanto receptáculo de um poder quase hegemônico, dança através do gbese e do hip-hop conforme reencontra sua identidade, convidando os outros a se juntarem a ela em um compasso descompassado que não tem quaisquer equívocos. Como bem pontuado no terceiro ato, “as pessoas não se lembram de quem eram, de quem são”; suas identidades foram apagadas por forças imprevisíveis e aterrorizantes e, mais do que nunca, está na hora dessa majestosa herança sair do esquecimento e ser enaltecida da melhor forma possível.

É claro que o álbum visual serve complemento para a interessante produção de The Lion King: The Gift, em que a artista é acompanhada de dezenas de artistas (inclusive sua filha, Blue Ivy) para homenagear uma história que não é apenas marcada por dores. Entretanto, o resultado final é muito maior do que todas as nossas expectativas e se transforma em uma monumental análise antropológica que se apodera da ficção fantástica, com a ficção científica, com o épico bíblico e com o documental. Há flertes com as clássicas histórias da mitologia católica, como Moisés, e uma designação de reconhecimento para os símbolos adinkra; acompanhada de nomes como Naomi Campbell, Lupita Nyong’o e sua velha amiga Kelly Rowland, Beyoncé não deixa nada de fora e imprime sua visão até mesmo nas vibrantes colorações dos mosaicos etíopes, nas coreografias egípcias e nas vestimentas sul-africanas.

A performer vai além do que já foi mencionado e, em uma incursão que tangencia o avant-garde, destrói os preceitos engessados das fábulas e dos contos atemporais para reerguê-los a seu bel-prazer. Ao mesmo tempo em que as inflexões são bem diferentes daquilo a que estamos acostumados, há um resiliente laço que une essas investidas, permitindo que acompanhemos uma trama de amor e ódio, de guerra e de paz. No final das contas, Beyoncé reitera o que todos nós sabíamos: que é uma artista imbatível e única dentro do que se propõe a fazer. Talvez como uma premeditação da importância de sua nova investida cinematográfica, o título é apenas a abertura sinfônica de uma obra-prima régia – e, como ela mesmo diz, “nenhum rei morre de verdade”.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Desde que Beyoncé resolveu deixar para trás seu legado na música pop ainda em 2013, ela alcançou uma maturidade criativa que ninguém poderia imaginar. Seja com seu álbum homônimo, com ‘Lemonade’ ou com suas apresentações fundidas no icônico documentário ‘Homecoming’, a cantora e compositora abraçou suas raízes de forma absoluta e nunca mais as deixou ir embora. E, seguindo os passos de sua participação do live-action de O Rei Leão, que encantou públicos ao redor do mundo, estava na hora de ela fazer história mais uma vez com sua própria releitura do clássico filme. Mas não da forma que esperaríamos, e sim trazendo a trágica obra arquitetada pelos estúdios Walt Disney ao complexo conflito entre o passado, o presente e o futuro – principalmente no tocante aos obstáculos enfrentados pelos negros.

Em uma comovente jornada sinestésica e coming-of-age, a artista não se retém em nenhum momento: cada cena que constrói é uma joia audiovisual, seja para nos presentear com os diversificados panoramas do continente africano fora do espectro panfletário, seja para nos chocar com irreverências cênicas e reviravoltas que fogem do convencionalismo, arrancando metáforas de um âmago marcado pela amargura e pela necessidade de gritar. O traslado imagético que transpõe para breves 85 minutos retrai-se e expande-se com naturalidade aplaudível, dando um significado único ao que entendemos como “multiculturalismo”. Mas não se engane: apesar da bonança promovida pela atmosfera do longa-metragem, suas sequências são carregada com críticas veladas e ironias mascaradas que denunciam o que precisa ser denunciado – e o que já deveria ter entrado como pauta de discussão há muito tempo.

Quando pensamos em ancestralidade africana, somos logo arremessados para os enviesados livros de história embebidos em visões imperialistas e em uma perspectiva unidimensional, ou seja, que não engloba todos os lados de uma mesma narrativa. Aqui, deseja-se (e consegue-se, em grande parte do filme) mudar isso: suas escolhas são pungentes e delineadas com clareza interlocutória invejável, reflexo de uma mente que nunca se deixou levar pelos outros. Não é surpresa que a composição estética seja ministrada com cautela, dando vida a progressões narcóticas, tanto musicais quanto visuais, deixando-se oscilar pelo tempo que for pedido.

Black Is King tem como principal artifício a mistura cultural: Beyoncé, liderando um grupo diverso de pessoas que tiveram suas histórias apagadas, emerge como Cleópatra e Hathor, como Maria e Madona, como mãe e filha. Ela é dotada de um emblema que não se reduz apenas à sua presença, mas espalha-se como símbolo de renascimento e de permanência que ninguém pode apagar. E, enquanto receptáculo de um poder quase hegemônico, dança através do gbese e do hip-hop conforme reencontra sua identidade, convidando os outros a se juntarem a ela em um compasso descompassado que não tem quaisquer equívocos. Como bem pontuado no terceiro ato, “as pessoas não se lembram de quem eram, de quem são”; suas identidades foram apagadas por forças imprevisíveis e aterrorizantes e, mais do que nunca, está na hora dessa majestosa herança sair do esquecimento e ser enaltecida da melhor forma possível.

É claro que o álbum visual serve complemento para a interessante produção de The Lion King: The Gift, em que a artista é acompanhada de dezenas de artistas (inclusive sua filha, Blue Ivy) para homenagear uma história que não é apenas marcada por dores. Entretanto, o resultado final é muito maior do que todas as nossas expectativas e se transforma em uma monumental análise antropológica que se apodera da ficção fantástica, com a ficção científica, com o épico bíblico e com o documental. Há flertes com as clássicas histórias da mitologia católica, como Moisés, e uma designação de reconhecimento para os símbolos adinkra; acompanhada de nomes como Naomi Campbell, Lupita Nyong’o e sua velha amiga Kelly Rowland, Beyoncé não deixa nada de fora e imprime sua visão até mesmo nas vibrantes colorações dos mosaicos etíopes, nas coreografias egípcias e nas vestimentas sul-africanas.

A performer vai além do que já foi mencionado e, em uma incursão que tangencia o avant-garde, destrói os preceitos engessados das fábulas e dos contos atemporais para reerguê-los a seu bel-prazer. Ao mesmo tempo em que as inflexões são bem diferentes daquilo a que estamos acostumados, há um resiliente laço que une essas investidas, permitindo que acompanhemos uma trama de amor e ódio, de guerra e de paz. No final das contas, Beyoncé reitera o que todos nós sabíamos: que é uma artista imbatível e única dentro do que se propõe a fazer. Talvez como uma premeditação da importância de sua nova investida cinematográfica, o título é apenas a abertura sinfônica de uma obra-prima régia – e, como ela mesmo diz, “nenhum rei morre de verdade”.

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