Infância Arruinada
Um dos projetos mais aguardados dos últimos anos quando o assunto é cinema nacional finalmente chega aos cinemas. Bingo: O Rei das Manhãs é a biografia de Arlindo Barreto e, por consequência, do papel pelo qual ficou marcado, o palhaço Bozo. Justamente por escancarar sem papas na língua os bastidores do programa infantil – mais barra-pesada que muita boate hardcore – é que a produções precisou sofrer mudanças em seu título e personagens.
Assim, o palhaço Bozo se tornou Bingo, Arlindo virou Augusto Mendes, e a cor do cabelo na fantasia passou de vermelho para azul. Assim como o debochado protagonista, este filme não engana ninguém, e apenas finge cumprir seus acordos contratuais, respeitando direitos, embora todos saibam muito bem de quem se trata – o filme sem dúvidas não faz questão de esconder.
Bozo é uma ideia original saída dos EUA. Quando os produtores norte-americanos pensaram em expandir o programa para outros continentes, o Brasil foi um dos países selecionados. Arlindo, ou melhor, Augusto, papel de Vladimir Brichta, vindo de um passado de filmes eróticos, decide se candidatar e termina abocanhando o papel do mascarado apresentador infantil.
Existe um forte subtexto e muita dualidade em diversos aspectos da produção, muito além do conto cautelar do plano geral. O homem por trás do palhaço é um sujeito empenhado, empreendedor, que escalou até o topo de seu segmento, desbancando emissoras mais poderosas (cof cof Globo cof cof) e se tornando líder de audiência. Tudo baseado em puro instinto comercial.
Com o sucesso vem também a dependência em álcool e drogas, e o estilo de vida de interminável festa, típico de um rock star. O contraponto entre a vida desregrada e incorreta do protagonista e o fato de trabalhar num programa infantil é interessante, mas existe muito mais coisa na elaborada fachada do personagem principal, como seu relacionamento quase doentio com a mãe (Ana Lúcia Torre), algo como Norman e Norma Bates, sua humanidade mesmo no auge da loucura e sua mudança de rumo ao desfecho. Vladimir Brichta é o grande trunfo por trás das camadas e do alcance do personagem. O ator nunca esteve tão carismático.
No elenco destacam-se ainda Leandra Leal como a produtora Lucia, o grilo falante (voz da consciência) do protagonista, Tainá Müller como a ex-mulher Angelica, Augusto Madeira como o câmera Vasconcelos, Emanuelle Araújo como Gretchen e o pequeno Cauã Martins como Gabriel, o filho. Todos variando cenas importantes de construção, sejam voltadas ao drama ou ao humor. Esta é outra mescla satisfatória no longa, que transita entre as tonalidades de gênero de forma harmoniosa.
O grande mérito dessa montagem, é claro, vai para o prestigiado Daniel Rezende, indicado ao Oscar por Cidade de Deus (2002), que tem no currículo trabalhos como Diários de Motocicleta (2004), A Árvore da Vida (2011) e RoboCop (2014). E editar Malick não é para os fracos. Em seu debute no comando de uma obra, Rezende estreia com o pé direito e entrega o filme nacional do ano – uma mescla entre cinema autoral de qualidade com um produto elegante, muito bem produzido (com pompa de grande produção) e totalmente vendável ao grande público, apesar do teor adulto bem incorreto.
O roteiro de Luiz Bolognesi (Bicho de Sete Cabeças) usa com base a estrutura da ascensão e declínio, reproduzida por diversos gêneros, como filmes de máfia, por exemplo, vide Scarface (1983), mas injeta tanta vida em suas entrelinhas que a produção transcende por conta própria, se tornando um produto único, com a força, liberdade e atestado de obra independente, sem as amarras costumeiras. Bingo: O Rei das Manhãs acaba com nossa infância, mas o faz com tamanha propriedade e diversão, que instantaneamente perdoamos este spoiler do porquê o palhaço era tão alegre e eufórico. “Sempre rindo, eu e você”, tudo terá outra conotação agora…