Produções de época têm um lugar especial no coração do público – motivo pelo qual fazem tanto sucesso. Desde as clássicas adaptações de ‘Mulherzinhas’, romance assinado por Louisa May Alcott, e de ‘Orgulho e Preconceito’, de Jane Austen, até a irreverência anacrônica da recente ‘Dickinson’, estrelada por Hailee Steinfeld, tais obras nos transportam para um mundo bastante diferente do nosso, recheado de figuras históricas importantes, intrigas amorosas e uma afeição exagerada pelo status e pelo casamento. É claro que boa parte dessas histórias não se limita apenas a caracterizações românticas – pelo contrário, aproveita o escopo para infundi-lo com críticas à sociedade da época e às disparidades de gênero e de raça -, utilizando um exuberante visual para nos envolver desde o primeiro momento.
O mesmo pode ser dito de ‘Bridgerton’. A nova série da Netflix, a primeira feita em parceria com a prolífica e aclamada realizadora Shonda Rhimes (‘Grey’s Anatomy’, ‘How to Get Away with Murder’), é baseada nos adorados romances de Julia Quinn, uma das autoras mais consumidas da atualidade – e faz um belo trabalho em levar a história da família Bridgerton para as telinhas. Em meio a oito longos episódios, que de certa forma esbarram em alguns obstáculos e deixam as problemáticas rítmicas transparecerem mais vezes do que deveria, a narrativa introduz aos espectadores um elenco incrível, recheado de química, que une o melhor das epopeias românticas às incursões tragicômicas austenianas – fornecendo camadas e mais camadas de complexidade a personagens a princípio tão rasos quanto um prato.
A verdade é que a série não seria o que é sem a mão de Rhimes por trás de tudo isso. Através da Shondaland, a empreendedora capta com naturalidade e sutileza invejáveis os trejeitos de cada protagonista, aliando-os a coadjuvantes que não ficam ofuscados ou são apenas jogados nas múltiplas subtramas – pelo contrário, servem como estrutura para as realizações e as reviravoltas do elenco principal. A trama pode até ser centrada em um núcleo familiar específico, mas é a partir dele que todos os outros encontram terreno para exibirem suas potentes vozes e figurinos coloridos. É a partir daí que, centrada numa Londres vitoriana, a produção nos apresente a Daphne Bridgerton (Phoebe Dynevor) e a Simon Basset (Regé-Jean Page), também conhecido como o Duque de Hastings.
Daphne é a primeira filha dos Bridgertons – mas ainda assim vive na sombra dos irmãos mais velhos, que nutrem de um senso superprotetor que a impede de encontrar alguém para se casar. Prestes a atingir a maioridade, Daphne encanta a Rainha Charlotte (Golda Rosheuvel) na nova temporada de cortejo da cidade e se torna a “joia rara” do ano, ganhando atenção de inúmeros pretendentes que prometem desposá-la e torná-la uma “digna dama” da sociedade. Entretanto, Anthony (Jonathan Bailey), assumindo o papel de homem da casa após o falecimento do pai, transforma algo simples em um árduo trabalho, espantando maridos em potencial e deixando-a à deriva por não acreditar que exista algum homem bom para a irmãzinha.
Dançando de baile e baile, Daphne se resigna ao prospecto de uma ruína que trará desonra à família – até cruzar caminho com o imponente e charmoso Simon. O Duque, recém-chegado de sua mansão no interior, é melhor amigo de Anthony e, logo de cara, não se dá bem com a jovem. Suas gritantes e conflitantes personalidades, porém, é o que desperta uma centelha de uma complicada e fervorosa paixão entre os dois – que não se manifesta até os dois tramarem um plano intrincado para serem deixados em paz. Simon, tendo jurado nunca se casar e levar o título de Hastings consigo para o túmulo, finge cortejar a dama para se livrar das outras mulheres; Daphne, por sua vez, recebendo atenção de alguém tão importante quanto o Duque, volta a atrair a atenção de outros cavalheiros.
A princípio, ‘Bridgerton’ parece apenas mais uma entrada qualquer em meio a tantas obras conterrâneas – mas tem um diferencial sagaz: sua ressonância, em certos aspectos, com a contemporaneidade. O romance e a adaptação seriada são pincelados com toques da atualidade que se fundem com perfeição ao panorama gritante e marmóreo da primeira metade do século XIX, percebidos em meio a diálogos que flertam com as tendências feministas da década de 1970 em diante, ou até mesmo na clássica orquestra que rearranja canções conhecidas em temáticas de baile – como “Wildest Dreams”, de Taylor Swift, e “Bad Guy”, de Billie Eilish, ambas ganhando uma dimensão imediatista e inesperada, contemplando o que já citamos como anacronismo narrativo, o mesmo visto em ‘Maria Antonieta’, por exemplo.
Não deixe de assistir:
À medida que o melodrama novelesco se apodera dos episódios, o showrunner Chris Van Dusen, que faz um ótimo trabalho ao comandar com rédeas firmes os arcos de cada um dos personagens, permite que a comédia pastelão seja dosada na medida certa e se infiltre nas subtramas, como ocorre com a família Featherington. Nesse novo núcleo, a matriarca Portia (Polly Walker) é uma dama da high society que deseja despojar as filhas mais que tudo na vida, mas que se vê num impasse quando a filha de um primo de seu marido chega do interior e rouba toda a atenção da comunidade; como se não bastasse, ela enfrenta a falência e a desmoralização do nome que carrega em virtude do vício em jogos do azar do esposo. Tais inflexões são tratadas com singularidade e mostram que Lady Featherington é uma impiedosa mulher que fará de tudo para assegurar o bem daqueles que ama.
Entre as rendições apaixonantes do restante do elenco, em especial de Claudia Jessie como a verborrágica Eloise Bridgerton e de Adjoa Andoh como a icônica Lady Danbury, e uma fotografia eufórica e evocativa que transforma os belíssimos cenários em pequenos oásis ingleses, a série pode até deslizar em certos momentos e repetir motes com constância cansativa – mas, no final das contas, é uma ótima pedida para quem precisa de um escape da realidade e para aqueles que gostariam de se imaginar nos suntuosos bailes da realeza, não se preocupando com mais nada além de dançar como se não houvesse amanhã.