Interoceânico
Roteirista tarimbado na indústria, o britânico Steven Knight tem no currículo textos como os de Coisas Belas e Sujas (2003) – que lhe rendeu sua indicação ao Oscar – e Senhores do Crime (2007). Na direção, também não é estreante, tendo comandado o excepcional exercício virtuoso (tanto de direção quanto de atuação) Locke (2014), com Tom Hardy, o qual igualmente assinou o roteiro. No entanto, quando procura sair de sua área de excelência (ou seja, dramas e thrillers realistas), Knight comete produções como O Sétimo Filho (2014) – fantasia pra lá de capenga, com Julianne Moore e Jeff Bridges. E infelizmente, Calmaria está mais inclinado para este lado.
Devo começar dizendo que Calmaria (Serenity, no título original) é um dos filmes mais insanos (e aqui o termo é pejorativo mesmo) que assisti nos últimos tempos. Coisa que você jamais suspeitaria lendo a sinopse, ou assistindo ao trailer. É o chamado “levar gato por lebre”. O longa te vende algo e lá pelas tantas te enfia goela abaixo outra coisa totalmente diferente. Imagine se no meio de uma sessão de Cabo do Medo (1991), o filme simplesmente se tornasse Matrix (1999). Sem estragar muito a “surpresa” dos corajosos que resolverem encarar o desafio, basta dizer isso.
O curioso é que se torna uma missão quase impossível adereçar os motivos de falha do longa sem entrar em território de spoilers. Porque em sua primeira metade, que está contida nas prévias, Calmaria satisfaz e desperta a curiosidade, mantendo o nível de suspense e o interesse do espectador. É quando surge o sofrível plot twist (que não chega ao final, e sim na metade da projeção) que o filme sai por completo dos trilhos, se mostrando uma tarefa árdua não abandonar a exibição – mesmo que o desfecho seja relativamente impactante.
Na trama, o vencedor do Oscar Matthew McConaughey interpreta uma versão dramática de seu personagem em Um Amor de Tesouro (2008). Baker Dill, seu personagem, é um sujeito simples, que vive da pescaria e de levar turistas para passear em seu barco, numa pequena cidadezinha americana. Sem grandes aspirações, ele se divide entre o sexo casual com a personagem de Diane Lane e seu trabalho. Até que no local chega sua ex-mulher, a femme fatale interpretada por uma Anne Hathaway (vencedora do Oscar) platinada e com uma pinta falsa no rosto. Karen, sua personagem, está casada com um sujeito rico, poderoso e abusivo (papel de Jason Clarke) e teme por sua segurança e do pequeno Patrick (Rafael Sayegh), seu filho com McConaughey. Assim, a mulher pede para que o ex-companheiro elimine a ameaça – sendo uma pessoa não muito confiável, o protagonista fica na dúvida sobre a legitimidade do pedido da ex.
Bom, por essa sinopse temos todos os ingredientes para um grande suspense – já que são levantados temas atemporais e fortes para qualquer estrutura de thriller. Vingança, traição, desejo, amor perdido, tudo está no lugar para a construção de uma obra que poderia se banhar nas conveniências do gênero e expandi-las. No entanto, a opção de Knight aqui é outra. É ousar ainda mais. E aí que reside o problema. A ambição do texto do diretor nunca é dominada pela sua condução narrativa – que sai de seu controle como um touro selvagem lá pelas tantas e o que nos resta, enquanto espectadores, é simplesmente sacudir a cabeça em descrença.
O que acontece é que a partir de uma grande revelação – que responde os detalhes mais enigmáticos da história -, Calmaria se transforma em outro filme. Em um pior. Que mistura em sua trama fantasia e ficção científica, acredite!! Além de completamente inesperado, o longa não consegue se recuperar e nos fazer embarcar nesta viagem com ele. Qualquer tema, por mais incrível e surreal que seja – mesmo que chegue de supetão – pode despertar o interesse, se bem trabalhado. Talvez se tal plot twist ocorresse no desfecho, quem sabe o argumento não seria mais palatável? Do jeito que está, somos forçados a continuar seguindo uma história que sabemos não ser mais real, personagens que não significam mais nada e um mundo de ilusão – quando o que queremos de verdade a partir dali é ir para o mundo real, entender melhor as peças que fazem este motor girar.
Calmaria promete alienar sua audiência e deixa-la estupefata, com o queixo caído – assim como eu fiquei. Talvez no papel soasse melhor – e o tema de abuso e suas consequências é sem dúvida digno. Os atores estão bem, mas não sobressaem como em trabalhos anteriores – aqui ambos os protagonistas criam estereótipos de personalidades já trabalhadas por eles no passado, de forma melhor. Mas os coitados aqui só afundam sem conseguir boiar nesta mar de incoerências e desconexões. Nem mesmo um McConaughey peladão mais do que de costume, para os que gostam da fruta, e certo teor sexual, prometem salvar os ânimos aqui. Infelizmente, sem prazer algum, posso afirmar que a lista dos piores do ano começa a tomar forma com seu novo candidato.