Prenda-me se For Capaz
Uma das melhores qualidades da sétima arte é nos apresentar um universo fora de nossa redoma, ao qual não estamos acostumados e, muitas vezes, sequer ciente de sua existência. Até mais do que filmes ficcionais, os documentários trabalham de maneira informativa, detalhando através de uma série de entrevistas e depoimentos, algum fato. No entanto, por se tratar ainda de um filme, muitas vezes encontramos certa parcialidade inserida nos temas retratados.
Um exemplo claro disso é no documentário A 13ª Emenda, da quase sempre ótima Ava DuVernay, no qual a diretora diz com todas as letras que por ela, todos os afro-americanos seriam soltos das prisões e colocados de volta nas ruas. Bem, talvez seja fácil falar isso do conforto de sua mansão em Beverly Hills, onde o risco de ser atingida pela violência é quase nenhum, mas não estamos aqui para falar de Ava ou da realidade nos EUA, e sim de crimes cometidos por aqui mesmo, no Brasil.
Em nosso país, estamos acostumados com crimes diários, e todo e qualquer tipo de violência. Seja nos crimes de colarinho branco, nos quais empresários e principalmente políticos nos privam de nossos direitos básicos, como educação e saúde, para encherem os bolsos de dinheiro mais um pouco, nos dando falsas esmolas, e muita distração para que olhemos para o outro lado. É o típico dar o peixe ao invés de ensinar a pescar. Aqui, é dar sardinhas miúdas mesmo. O resultado é uma insatisfação geral, o aumento da pobreza e consequentemente da criminalidade.
Seguindo pelo outro lado deste espectro, mas motivado por muito do que foi dito no parágrafo acima, se encontra Laéssio Rodrigues de Oliveira, o tema deste documentário. Sim, provavelmente você, assim como eu, nunca havia ouvido falar de tal personagem. Pois fique sabendo que se trata de um dos mais sofisticados gatunos que este país tupiniquim já teve conhecimento.
Encontramos o protagonista saindo de uma de suas muitas estadias encarcerado na prisão. Homossexual assumido, Laéssio vai cativando aos poucos o espectador, com sua fala fácil e esbanjando o conhecimento inegável que possui não apenas de arte e cultura, como de problemas sócio econômicos de nosso país. Laéssio é também um exímio criminoso, um ladrão, mas não do tipo ao qual estamos acostumados em nosso país. Ele não é um traficante, um bandido armado, ou sequer um trambiqueiro do alto escalão. Laéssio é um ladrão de obras de arte antigas, mais precisamente livros e documentos históricos.
Em A Menina que Roubava Livros (2013), uma pequena garota alemã cria esperança na desolação da Segunda Guerra Mundial roubando livros que seriam queimados por Hitler e os nazistas, e dividindo esta cultura com outras pessoas, para que estas obras não fiquem extintas. O protagonista de Cartas para um Ladrão de Livros talvez tenha uma intenção próxima, mas incrivelmente deturpada. Em sua ideologia, o governo não merece tais obras em seu poder, devido ao pouco caso que é feito em relação a seus cuidados, e investimentos no setor cultural. Assim, ele singelamente retirou algumas das peças mais valiosas de diferentes instituições, e as vendeu para compradores particulares – criminosos iguais, ou até mesmo piores do que ele. Mas que, obviamente, se recusaram a aparecer no documentário, alguns ainda ameaçando de processo qualquer menção de seus nomes. O próprio protagonista é cuidadoso quanto a isso e mantém seus nomes bem longe da divulgação – não é como se ele já não tivesse problemas suficientes.
Pense em quem financia o crime ao comprar produtos de procedência duvidosa, mas algo realizado em escala muito maior. Existe certa lógica no discurso de Laéssio, e uma visão romântica por trás de tudo, com devaneios de fama e riqueza. O famoso deixar sua marca no mundo a qualquer custo. O interessante é que Laéssio é coerente, educado, bem instruído e muito conhecedor acima de tudo, algo que inclusive seus detratores precisam dar o braço a torcer. Ao menos na frente das câmeras, já que precisamos compreender que esta é a imagem que Laéssio quer propagar, e ele é inteligente o suficiente para revelar seu melhor lado para o filme que o retrata, mas não o homenageia.
Este é justamente o maior êxito de Cartas para um Ladrão de Livros, dirigido por Calos Juliano Barros e Caio Cavechini. O filme relata sem enaltecer, a todo momento mostrando o contraponto da visão romantizada e hiper-realista que Laéssio possui de si mesmo, através de figuras como o policial federal responsável pelas investigações do caso, ou da diretora de uma das instituições que tiveram o azar de ver no caminho o infrator larápio. Tais impressões são acertadas e necessárias para o estabelecimento de quem é esta figura. Herói ou vilão. Criminoso imperdoável ou vítima do sistema. O documentário precisou constantemente sofrer hiatos durante as inúmeras prisões de Laéssio, o irremediável Robin Hood de nossos tempos.
Um documentário só é válido se o tema apresentado for interessante, se valer a pena a perda de tempo não apenas para ser assistido pelo público, mas pelo tempo que os envolvidos irão perder de vida para confeccioná-lo. E principalmente, o que os realizadores têm a dizer sobre este tema. E aqui, bastante tempo foi gasto – quase como um Boyhood (2014) documental. O resultado rende uma obra de fácil acesso, interessantíssima e muito emocional. Mesmo sem concordarmos com o tipo de vida que Laéssio decidiu trilhar para si, é impossível não se conectar e perceber em muitos momentos a alma totalmente despida de um ser humano perdido.
Assim como nos tentadores e glamourizados filmes de assalto e crime – que já renderam alguns dos grandes trabalhos do cinema, vide a trilogia O Poderoso Chefão, Os Bons Companheiros, Onze Homens e um Segredo, entre outros, o perigo de uma vida fora dos trilhos não deixa de fascinar o espectador, pelo risco que gera adrenalina e nos mantém constantemente próximos. O teor quase inacreditável, ao ponto de soar como a mais fantasiosa ficção, apenas demonstra que o ser humano segue sendo um mistério que talvez nunca seja desvendado, tampouco nunca deixará de gerar encantamento.