Há filmes que, se você se deixa levar pelo elenco, pode acabar tendo surpresas não tão agradáveis, no sentido de você estar acostumado a ver um determinado ator ou atriz tendo feito sucesso em uma franquia bastante popular ou familiar, e, de repente, vê um filme dele ou dela com inclinações mais dramáticas e doloridas. É o caso de Aldis Hodge, ator cuja carreira cresceu após participar da série ‘Black Mirror’, do seu papel inesquecível no indicado ao Oscar ‘Uma Noite em Miami’ e, mais recentemente, como o Gavião Negro no pipocão ‘Adão Negro’. Agora ele brilha no intenso e dramático longa ‘Clemência’, disponível aos assinantes da Netflix.
Bernadine Williams (Alfre Woodard) trabalha há trinta anos como carcereira de um sistema penitenciário de segurança máxima em uma cidade nos Estados Unidos. Sua função, além de gerenciar o local, é coordenar e dar a autorização para a execução da pena de morte aos detentos que aguardam a hora chegar, ou seja, ela prepara a equipe, o local, faz o treinamento, organiza as testemunhas, certifica de que os últimos desejos dos detentos sejam atendidos e que eles tenham acompanhamento espiritual em seus últimos dias, etc. Embora faça muito bem seu trabalho, após um incidente na execução da morte de Victor Jimenez (Alex Castillo) a dura casca de proteção que Bernadine criou para se proteger sofre uma fissura, e agora, diante dos pedidos do marido, Jonathan (Wendell Pierce), para que se aposente, e da iminente execução do detento Anthony Woods (Aldis Hodge), ela irá duvidar de sua capacidade e começar a questionar a relevância de seu trabalho.
‘Clemência’ é o tipo de filme que não busca o entretenimento, mas sim estimular o pensamento crítico e a reflexão. Escrito e dirigido por Chinonye Chukwu, o filme parte dessa protagonista durona, insensível, que realiza seu trabalho mecanicamente, quase como se não houvesse diferença entre apontar um lápis e dar autorização para a execução de alguém. Nesse ponto é preciso ver a solidez com que Alfre Woodard construiu sua personagem até a cena final, que nos esclarece o título do filme. Em contraparte, temos um impressionante Aldis Hodge de cara fechada; mesmo com poucas falas, consegue transmitir um monte com seu silêncio e seu olhar. São as atuações desses dois que carregam o filme, prendem o espectador e fazem com que nós nos simpatizemos com cada ponta dessa interação polarizada.
O soluço no roteiro, porém, é a falta de eventos. Passamos a maior parte do tempo acompanhando a crise de Bernadine, o quanto sua profissão afeta seu mundo, mas, na prática, pouca coisa acontece de fato. É apenas a rotina da impassível protagonista, que executa sentenças de morte, finge que isso não a abala e, à noite, não consegue dormir, recheada de pesadelos. Ainda que a construção dos personagens tenha sido bem feita, faltou elementos para comporem o enredo para além deles.
‘Clemência’ é dolorido, e levanta a trivialidade com que os Estados Unidos estão tratando a questão da pena de morte. Ao colocar a câmera em close nessa história e em seus personagens, fica impossível ao espectador não ponderar sobre a questão. Bem dirigido e intensamente atuado, surpreende, inclusive, por ter sido gravado em apenas 17 dias, o que demonstra a competência de todos os envolvidos.