O mundo da música é marcado por mudanças, talvez mais claramente que as outras vertentes artísticas como o cinema, a literatura, a televisão, entre outros. É claro que, dependendo da época sobre a qual falamos, precisamos analisar o contexto histórico e socioeconômico que permitiu que tais transições – bruscas ou não – encontrassem espaço para se concretizarem, mas dentro do escopo musical, isso acontece com mais frequência do que realmente deveria. E em 2017, todo o cenário ao qual estávamos acostumados, principalmente aos fãs do mais puro pop contemporâneo, sofreu um baque inesperado com a dissolução do grupo conhecido como Fifth Harmony após a saída não-premeditada de uma de suas lead singers, Camila Cabello.
Entre picuinhas e discussões, Cabello resolveu investir em sua carreira solo e desde então vem fazendo mais sucesso que a girlband que deixara para trás, procurando uma identidade própria que conversasse com suas raízes e até mesmo com as mensagens que gostaria de deixar para a crescente gama de fãs que acompanham seu trabalho desde o princípio. E então a concretização de seus sonhos finalmente tomou forma com o lançamento de seu primeiro álbum de estúdio, intitulado ‘Camila’ – e que não poderia ter um melhor título, visto que essencialmente expressa os desejos românticos mais sexys e envolventes da cantora.
De forma geral, sua re-estreia no cenário artístico já sofria há um tempo uma generalização positiva. A concretização dessas previsões, entretanto, vai além do que se esperava, principalmente se levarmos em conta que os singles promocionais do disco poderia representar a nata das composições – e felizmente fomos apresentados a uma situação muito bem equilibrada entre altos e baixos. Os vocais de Cabello, como sempre, permanecem em uma falha proposital que transita entre o suave contralto mas encontra-se de forma aplaudível no soprano – e também é digno nota dizer que sua tecedura é capaz de tramitar as mais belas baladas de amor em contraposição à ardência de faixar mais dançantes e sensuais.
É até uma surpresa agradável dizer que ‘Camila’ se inicia com “Never Be The Same”. A influência do techno pop, que tornou-se extremamente difundido com a chegada da era digital, se mostra de forma clara principalmente no prelúdio e nas transições; porém, é realmente e versatilidade da voz da artista que rouba o foco, começando em um tom mais grave, encontrando-se de forma momentânea nos falsetes e retornando para um ótimo refrão. Apesar da predominância do sistema modal e de uma familiar e gradativa premissa, essa previsibilidade não consegue ofuscar a envolvência da cantora. E isso não se mantém apenas neste single, alastrando-se também para músicas como “Into It” e “In the Dark”: ainda que não tenham uma evidência tão clara sim, a amálgama entre um tom mais brando e os falsetes se repete de forma satisfatória, mesmo traçando paralelos com cantoras conterrâneas como Ariana Grande e Selena Gomez.
Apesar disso, o álbum perde um pouco de seu brilho com a emergência de “All These Years”. A princípio, a faixa quase épica, que narra a história do retorno de um amor perdido e de que como os sentimentos do eu lírico não mudaram mesmo após vários e vários anos, é deliciosa de ser ouvida. Sua atmosfera inebriante restringe-se aos poucos avanços do arranjo musical, permanecendo fincado ao bucólico violão elétrico com algumas investidas techno. Entretanto, se pegarmos a essência da música, essa história romântica e até mesmo emocionante é varrida para debaixo do tapete: afinal o escopo produzido é muito semelhante a uma faixa tão amena quanto, intitulada “Love Yourself”, de Justin Bieber. A progressão musical segue o mesmo padrão, incluindo as viradas, os crescendos e o desfecho; se não fosse pela dissonância entre Cabello e Bieber – e por alguns maneirismos caprichosos ao final do último ato -, poderíamos estar lidando até mesmo com um caso de cópia ou mimésis estranhamente bem-intencionada.
‘Camila’ volta a atingir seu ápice quando investe fortemente em baladas mais lentas e permeadas pelo piano clássico. Essa fusão à prima vista desordenada de inúmeros instrumentos – de cauda, de corda e até mesmo de percussão – é na verdade a estética identitária do disco, o qual preza pelo melhor do melhor e pela criação de algo que atinja um grande número de pessoas, seja aqueles que se afeiçoem mais a hinos de sofrimento e desapego, do amor incondicional e atemporal ou da sensualidade exacerbada. “Something’s Gotta Give” é um desses espasmos inusitados que explora a capacidade emocional da artista e cria algo tocante, utilizando-se de elementos mais modernos para contar uma narrativa sobre reciprocidade. Essa ambiência logo encontra mais uma vez uma apatia conformista proposital e incrivelmente bem colocada com “Real Friends”, que conversa de certa forma com a música anterior ainda que de forma mais sutil e irônica – e mais pautada no clássico violão.
O ápice do álbum é, sem dúvida alguma, a originalidade com a qual Cabello trata suas raízes. Sabe-se que a cantoria tem descendência cubana e, levando em conta a relevante liberdade que lhe foi concedida para a produção de seu primeiro disco solo, o fato de ter abraçado sua própria história como arco geral é uma jogada muito interessante e que funciona em sua maior parte. “Inside Out” e sua encantadora premeditação parece uma joia bruta quando comparada, por exemplo, com “She Loves Control”, um conto de empoderamento marcado por uma estética ao mesmo tempo nostálgica e modernizada para um ritmo que ainda encanta qualquer um que o ouça.
“Havana”, o principal single do álbum que inclusive tornou-se um sucesso inesperado entre o público e a crítica, é a declaração de amor de Cabello às suas matrizes latinas. A música mais uma vez é configurada com uma roupagem pop dançante e que avança timidamente para vertentes eletrônicas, mas que logo é refreada pela presença das inúmeras características cubanas: nessa arquitetura musical muito bem delineada, temos as extensas variações e heranças da Europa e da América Latina mesclados em uma abordagem eletroacústica entre jazz, rock, mambo, salsa e merengue. Essa diversidade não apenas é muito bem-vinda como também fornece uma prematura identidade para a cantora, que pode explorar seu infinito potencial de vários modos.
Uma estreia memorável e inédita é talvez a principal característica a ser concedida para ‘Camila’. Permitindo que uma jovem e incrível voz como a dessa artista consiga se aventurar por caminhos nunca imaginados, é mais que óbvio que sua saída do grupo que a tornou famosa, mas a endossava em uma reciclagem musical, não poderia ter vindo em hora melhor.
Nota por faixa:
- Never Be The Same – 5/5
- All These Years – 3,5/5
- She Loves Control – 4/5
- Havana – 5/5
- Inside Out – 3,5/5
- Consequences – 3,5/5
- Real Friends – 4,5/5
- Something’s Gotta Give – 4,5/5
- In The Dark – 4/5
- Into It – 4/5
- Never Be The Same (Radio Edit) – 5/5