segunda-feira , 23 dezembro , 2024

Crítica | Deixando Neverland – Michael Jackson volta ao banco dos réus em documentário pesado

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Infância abreviada, carreira meteórica, uma sucessão de hits consecutivos, em pequenos intervalos. Michael Jackson começou a construir o seu nome ainda com pouca idade. O mais jovem do grupo Jackson 5, ele sempre foi o maior destaque, alcançando altas notas musicais e compondo canções que encantaram as mais diversas gerações. Atravessando décadas sempre à frente de seu tempo, ele inovou na dança com seu clássico moonwalk e músicas que até hoje são consideradas algumas das melhores composições da história da indústria fonográfica.



Automaticamente, para o público de fora, sua boa reputação profissional se estendera para o campo pessoal, mesmo sem qualquer conhecimento de causa. Mas suas peculiaridades e apego inexplicável à criança que nunca conseguiu ser também se tornaram seu grande problema. Julgado duas vezes por pedofilia – uma delas envolvendo uma criança com câncer em estágio avançado -, ele volta ao banco dos réus, no documentário sensação do Festival de Sundance 2019, Deixando Neverland. E pelos novos relatos, tentar manter sua inocência está cada vez mais difícil – ainda que muitos queiram usar seu sucesso profissional como base para o seu caráter enquanto homem.

Se até então os boatos, relatos e acusações que permearam as décadas de 90 e 2000 pareciam não abalar sua reputação sempre sustentada por fãs – que amam o artista, mas preferem dar às costas para as terríveis alegações -, as cruéis descrições de Wade Robson e James Safechuck podem transformar nossa percepção do tipo de homem que Jackson fora. É fato que seus comportamentos, estilo de vida e escolhas pessoais sempre levantaram sobrancelhas, gerando todo tipo de questionamento. Mas o conteúdo que nos é apresentado nas telas, no novo documentário da HBO, vai além da nossa compreensão humana do que achávamos saber sobre o artista. E, diante das exposições tão gráficas, registradas pelo documentarista Dan Reed, não dá para simplesmente alegar – sem qualquer cerimônia – que estamos diante de dois homens sedentos por dinheiro e poder. A dor dos relatos é profunda demais para ser meramente tratada como “trambiqueiros, oportunistas”.

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Causando desconforto, náuseas e um terrível mal estar, as quatro horas de filme, divididas em duas partes, trazem detalhes específicos da sucessão de abusos sofridos. Difícil de assistir, o documentário exige do público um estômago forte e uma pausa necessária, para absorver todo o conteúdo. E ao contrário da maioria – que sequer assistiu e já chama as possíveis vítimas de atores -, os relatos são mais autênticos do que se esperava. Contando como seus relacionamentos começaram com o cantor, percebemos um padrão doentio no comportamento de Jackson e fica ainda mais claro que esse tipo de abuso, nem as mentes mais criativas conseguiriam inventar. E é notável o desconforto de ter que voltar ao passado para relembrar o que ocorreu. A fala travada, os olhos marejados e a linguagem corporal entregam uma verdade que nem a melhor das atrizes seria capaz de entregar. Seria preciso três Meryl Streep para garantir a atuação do século nesse contexto.

A exposição dilacerada, exposta em atos que falam cruelmente sobre as práticas sexuais e o abuso psicológico imposto em crianças de sete e oito anos, deixam ainda mais evidente o peso das declarações. Contradizendo o que muitas pessoas – que jamais foram vítimas de assédio e abuso sexual – adoram dizer, não há prazer e nem benefício direto em se expor diante do mundo. Recontar traumas, principalmente de maneira tão franca e literal, traz mais dores que alívio. A opinião pública, os fãs caóticos que se recusam a dar o benefício da dúvida, o mundo inteiro olhando e te julgando. Se abrir sobre o abuso sexual tem o sabor agridoce de se libertar de uma sofrimento, mas traz consigo as consequências do julgamento alheio. Além disso, não é fácil dizer aquilo que, aparentemente, ninguém está interessado em ouvir sobre um dos maiores ícones da cultura POP.

E ainda que alguns argumentos supunham uma certa parcialidade no documentário, há de se discordar veemente. Vivemos duas décadas ouvindo o que Michael Jackson tinha a dizer sobre as várias acusações (inclusive de uma de sua empregadas, Blanca Francia – que testemunhou alguns comportamentos inapropriados). Tanto ouvimos, que jamais tivemos tempo para escutar as vítimas apresentadas. Jordan Chandler, Gavin Arvizo e seus julgamentos foram tratados pela ótica do estrelato de Michael, sendo desacreditados. O interesse público pelas vítimas se perdeu em meio aos holofotes destinados à reputação artística do músico. Safechuck e Robson, sob anos de abuso emocional firmado na culpa e na demonstração de “amor” por parte do artista, defenderam-no o quanto suportaram. Até entenderem que, o que então fora aprendido com Michael Jackson, entre quatro paredes, não era a definição de amor, mas sim pedofilia.

Estar diante de Deixando Neverland é doloroso. É difícil também julgar um homem que não está mais aqui para se defender. Mas descreditar vítimas, como os anos e o mundo assim o fizeram, não dá mais. Observar os relatos da maneira mais imparcial possível é necessário para que aprendamos a olhar para os que sofreram e ainda sofrem com o abuso que viveram. É também preciso separar o homem do artista performático para ter essa visão. Como público, que cresceu assistindo a alguns dos melhores clipes já feitos na história, tendemos a absorver a paixão platônica por um artista, transferindo-a para o seu caráter.

E talvez esse seja um dos grandes erros cometidos à época, quando o mito sobrepôs o ser humano, dificultando um julgamento mais justo. E acostumadas a serem vistas com escárnio e piada, essas e tantas outras vítimas de tantos outros abusos optam pelo refúgio do silêncio, justamente pelo impacto negativo que a verdade pode trazer. Passados mais de 20 anos, este documentário traz à tona um questionamento profundo sobre uma ferida aberta que custa a fechar, abrindo brecha para novas alegações. E ainda que muitos insistam em defender MJ cegamente, sem qualquer questionamento, precisamos assistir ao documentário até o final e nos perguntar: será mesmo que não aconteceu absolutamente nada?

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Infância abreviada, carreira meteórica, uma sucessão de hits consecutivos, em pequenos intervalos. Michael Jackson começou a construir o seu nome ainda com pouca idade. O mais jovem do grupo Jackson 5, ele sempre foi o maior destaque, alcançando altas notas musicais e compondo canções que encantaram as mais diversas gerações. Atravessando décadas sempre à frente de seu tempo, ele inovou na dança com seu clássico moonwalk e músicas que até hoje são consideradas algumas das melhores composições da história da indústria fonográfica.

Automaticamente, para o público de fora, sua boa reputação profissional se estendera para o campo pessoal, mesmo sem qualquer conhecimento de causa. Mas suas peculiaridades e apego inexplicável à criança que nunca conseguiu ser também se tornaram seu grande problema. Julgado duas vezes por pedofilia – uma delas envolvendo uma criança com câncer em estágio avançado -, ele volta ao banco dos réus, no documentário sensação do Festival de Sundance 2019, Deixando Neverland. E pelos novos relatos, tentar manter sua inocência está cada vez mais difícil – ainda que muitos queiram usar seu sucesso profissional como base para o seu caráter enquanto homem.

Se até então os boatos, relatos e acusações que permearam as décadas de 90 e 2000 pareciam não abalar sua reputação sempre sustentada por fãs – que amam o artista, mas preferem dar às costas para as terríveis alegações -, as cruéis descrições de Wade Robson e James Safechuck podem transformar nossa percepção do tipo de homem que Jackson fora. É fato que seus comportamentos, estilo de vida e escolhas pessoais sempre levantaram sobrancelhas, gerando todo tipo de questionamento. Mas o conteúdo que nos é apresentado nas telas, no novo documentário da HBO, vai além da nossa compreensão humana do que achávamos saber sobre o artista. E, diante das exposições tão gráficas, registradas pelo documentarista Dan Reed, não dá para simplesmente alegar – sem qualquer cerimônia – que estamos diante de dois homens sedentos por dinheiro e poder. A dor dos relatos é profunda demais para ser meramente tratada como “trambiqueiros, oportunistas”.

Causando desconforto, náuseas e um terrível mal estar, as quatro horas de filme, divididas em duas partes, trazem detalhes específicos da sucessão de abusos sofridos. Difícil de assistir, o documentário exige do público um estômago forte e uma pausa necessária, para absorver todo o conteúdo. E ao contrário da maioria – que sequer assistiu e já chama as possíveis vítimas de atores -, os relatos são mais autênticos do que se esperava. Contando como seus relacionamentos começaram com o cantor, percebemos um padrão doentio no comportamento de Jackson e fica ainda mais claro que esse tipo de abuso, nem as mentes mais criativas conseguiriam inventar. E é notável o desconforto de ter que voltar ao passado para relembrar o que ocorreu. A fala travada, os olhos marejados e a linguagem corporal entregam uma verdade que nem a melhor das atrizes seria capaz de entregar. Seria preciso três Meryl Streep para garantir a atuação do século nesse contexto.

A exposição dilacerada, exposta em atos que falam cruelmente sobre as práticas sexuais e o abuso psicológico imposto em crianças de sete e oito anos, deixam ainda mais evidente o peso das declarações. Contradizendo o que muitas pessoas – que jamais foram vítimas de assédio e abuso sexual – adoram dizer, não há prazer e nem benefício direto em se expor diante do mundo. Recontar traumas, principalmente de maneira tão franca e literal, traz mais dores que alívio. A opinião pública, os fãs caóticos que se recusam a dar o benefício da dúvida, o mundo inteiro olhando e te julgando. Se abrir sobre o abuso sexual tem o sabor agridoce de se libertar de uma sofrimento, mas traz consigo as consequências do julgamento alheio. Além disso, não é fácil dizer aquilo que, aparentemente, ninguém está interessado em ouvir sobre um dos maiores ícones da cultura POP.

E ainda que alguns argumentos supunham uma certa parcialidade no documentário, há de se discordar veemente. Vivemos duas décadas ouvindo o que Michael Jackson tinha a dizer sobre as várias acusações (inclusive de uma de sua empregadas, Blanca Francia – que testemunhou alguns comportamentos inapropriados). Tanto ouvimos, que jamais tivemos tempo para escutar as vítimas apresentadas. Jordan Chandler, Gavin Arvizo e seus julgamentos foram tratados pela ótica do estrelato de Michael, sendo desacreditados. O interesse público pelas vítimas se perdeu em meio aos holofotes destinados à reputação artística do músico. Safechuck e Robson, sob anos de abuso emocional firmado na culpa e na demonstração de “amor” por parte do artista, defenderam-no o quanto suportaram. Até entenderem que, o que então fora aprendido com Michael Jackson, entre quatro paredes, não era a definição de amor, mas sim pedofilia.

Estar diante de Deixando Neverland é doloroso. É difícil também julgar um homem que não está mais aqui para se defender. Mas descreditar vítimas, como os anos e o mundo assim o fizeram, não dá mais. Observar os relatos da maneira mais imparcial possível é necessário para que aprendamos a olhar para os que sofreram e ainda sofrem com o abuso que viveram. É também preciso separar o homem do artista performático para ter essa visão. Como público, que cresceu assistindo a alguns dos melhores clipes já feitos na história, tendemos a absorver a paixão platônica por um artista, transferindo-a para o seu caráter.

E talvez esse seja um dos grandes erros cometidos à época, quando o mito sobrepôs o ser humano, dificultando um julgamento mais justo. E acostumadas a serem vistas com escárnio e piada, essas e tantas outras vítimas de tantos outros abusos optam pelo refúgio do silêncio, justamente pelo impacto negativo que a verdade pode trazer. Passados mais de 20 anos, este documentário traz à tona um questionamento profundo sobre uma ferida aberta que custa a fechar, abrindo brecha para novas alegações. E ainda que muitos insistam em defender MJ cegamente, sem qualquer questionamento, precisamos assistir ao documentário até o final e nos perguntar: será mesmo que não aconteceu absolutamente nada?

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