OSSADAS QUE INSISTEM EM SAIR DA COVA
Ah, o Terror… gênero com uma queda pelas metáforas. Mais do outros, o terror facilmente enrosca seu enredo em um gesto obsceno com uma metáfora, uma alusão, um sentido figurado que seja. De que outra forma você vai interpretar Jason Voorhees, se não como um pastor radical louco para punir seus fies que saem por ai fazendo sexo?!
Exageros à parte, em graus distintos, o terror oferece-nos metáforas que tentam equacionar medos primitivos. Quando assistimos a um filme como Sexta-Feira 13, no qual a história esconde bem a metáfora, podemos vivenciar medos, traumas e reclaques. A atual – e ótima – safra de filmes de terror tem apresentado metáforas incríveis, embora, muitas vezes, sem tanta sutileza. The Babadook, genial trabalho da diretora australiana Jennifer Kent, deixa bem claro o pedido para que busquemos a metáfora.
Todos esses filmes, contudo, têm finais que nos dão um terreno sólido para viajarmos nos seus significados. Demon, co-produção entre Polônia e Israel, com um desfecho que dividir opiniões, é instável em suas possibilidade metafóricas. E, se você conseguir digerir o desfecho, essa instabilidade será muito boa.
Na primeira hora do filme, o diretor polonês Marcin Wrona demonstra domínio da técnica e das convenções do terror, fazendo um trabalho incomodo. Demon trata da festa de casamento de Piotr (Itay Tiran) e Zaneta (Agnieszka Zulewska). Eles se conheceram fora da Polônia e Piotr irá conhecer a família da sua noiva na véspera do casamento. Após descobrir uma ossada no quintal da futura cada do casal – aonde também será a festa – Piotr será possuído.
A fotografia dessaturada transmite tanto o clima de frio da Polônia quanto o clima sobrenatural. A direção de arte, a atuação dos atores, as composições visuais instigantes e a crescente tensão conduzida na primeira hora de projeção, até chegarmos aos estranhos 34 minutos finais, tudo orquestrado pela direção figadal de Wrona. Destaque para o talento do ator Itay Tiran, essencial para o sucesso da narrativa. Quem gosta de terror, certamente irá admirar essa primeira hora.
Spoilers sobre o final do filme. Se não quiser saber, não ultrapasse a imagem.
Piotr é possuído por um dybbuk, um espírito que, segundo o folclore judeu, vaga pela terra até possuir o corpo de alguém. O que vemos no terceiro ato do filme vai contra o que estamos acostumados quando falamos de possessões e exorcismos. O talento de Wrona começa pelo fato de intensificar o humor negro nessa parte. A festa de casamento, por exemplo, não é encerrada após o “ataque epilético” do noivo. Pelo contrário! Com a chuva, todos vão para dentro da casa, no porão da qual estão tentando salvar Piotr do dybbuk. Tudo é trabalhado para provocar uma sensação de estranhamento no público.
O ponto de virada do filme, e que pode gerar raiva na plateia, ocorre quando Piotr some, sem mais e nem porquê. Reviram a cidade, sem encontrar o noivo. Daí, vemos o pai da noiva, diante dos convidados da festa, fazendo um discurso no qual diz “Vamos esquecer tudo aquilo que vimos aqui hoje”. E, simplesmente, os convidados desaparecem. Isso mesmo, os convidados somem. E a casa é demolida e Zaneta vai embora da cidade. Sim, o final desconstrói a narrativa, não explica o que aconteceu com Piotr e decreta que tudo o que vimos fora uma alegoria.
Quem gosta de finais fechados ou de finais abertos, mas sem metalinguagens, não terá em Demon o seu filme. Wrona nem esconde a metáfora, nem deixa ela ao lado de uma história fechadinha. Ele desestrutura a narrativa e diz, “decifra-me ou te devoro”.
Considerando as menções ao passado da Polônia, a alegoria mais evidente é a das dificuldades do povo polonês de digerir um quintal ainda cheio de ossos. Da segunda Guerra aos tempos atuais, passando pelo período comunista, Wrona parece dizer que o povo polonês, sem coragem de decodificar seus traumas, prefere o tempo todo fechar as covas do passado e embriagar-se na festa do presente. Mas, as covas do passado insistem em abrir novamente, como um dybbuk exigindo entendimento. E se, como o pai da noiva, os poloneses tentarem simplesmente decretar o esquecimento, o resultado será com o final do filme, incoerente e incômodo.
Há outra interpretação possível. O promissor diretor Wrona foi encontrado morto, aos 42 anos, no período de lançamento de Demon. As autópsias indicaram suicídio. O escritor Albert Camus disse que a única questão filosófica relevante era o suicídio.
Wrona nos legou uma obra já em si instigante. E seu suicídio acrescentou ao filme a inescapável pergunta: quais dybbuks habitam uma alma angustiada?
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