Quando pensamos no gênero cinematográfico pós-apocalíptico, é bem comum que associemos tais narrativas ou a desastres naturais ou a criaturas demoníacas que representam uma ameaça ao planeta e aos últimos sobreviventes da raça humana. Entretanto, enquanto esse panorama é o que normalmente rege enredos datados e previsíveis, é necessário lembrar que histórias que seguem esse padrão são apenas um emplastro para explorar os limites da capacidade e da empatia humanas frente a perigos desconhecidos – servindo até mesmo como base para análises antropológicas do embate entre a vida em comunidade e a tirania desmedida.
É claro que, com o passar dos anos, a indústria do entretenimento resolveu se afastar dessa alegórica essência, misturando tramas conhecidas a incursões divertidas, puxando um pouco da comicidade trágica – como visto na franquia ‘Zumbilândia’, por exemplo, que recentemente chegou ao fim com um inesperado e divertido segundo capítulo. Ou então a promissora ‘Daybreak’, cuja estética coming-of-age transformou uma luta pela sobrevivência em uma irreverente rom-com com um final surpreendente (que não terá continuação, visto que a Netflix a cancelou após uma sólida temporada). De qualquer forma, a “confortável” ação vista em ‘Resident Evil’ (uma das franquias mais famosas do gênero) ou o drama tour-de-force de obras como ‘O Impossível’ já parece não nos comover como antes – e, bem, reinvenção é a palavra-chave para se afastar de fórmulas datadas e surpreender espectadores que já estão cansados da mesmice.
E apesar do nome de Michael Matthews não ter o reconhecimento que merecia ter, devemos ficar atentos no momento em que ele resolver voltar à ativa – como fez este ano com a espantosa grandiosidade de ‘Amor e Monstros’. Matthews já havia ficado responsável pelo drama western ‘Cinco Dedos por Marselha’, que levou para casa inúmeros prêmios e que o colocou no centro dos holofotes; porém, imaginar que o cineasta viria a comandar um profundo retrato de um mundo assolado por criaturas mutantes à medida que construía uma épica jornada de amadurecimento e de amor seria impossível. Eventualmente, o longa-metragem em questão insurge como um dos melhores de 2020, um escape mais denso do que parece e mais crítico do que soa, afastando-se do pedantismo novelesco de obras similares e guiado por performances irretocáveis e enigmáticas.
Matthews faz um ótimo uso de clichês, cautelosamente pincelando-os com um classicismo que há muito não se vê no cenário fílmico, sem deixar que o óbvio transpareça. Em outras palavras, é possível premeditar cada passo do protagonista vivido por Dylan O’Brien, Joel Dawson. Isolando-se com um grupo de sobreviventes em um bunker por sete anos, Joel entra em contato com uma antiga paixão, Aimee (Jessica Henwick), e decide deixar sua família para trás e cruzar dezenas de quilômetros para encontrá-la. Por quê? Honestamente, o motivo não importa: nós compramos e aceitamos tudo o que está por vir – e sabemos, desde o momento em que ele pisa para fora de seu refúgio que seu arco será perscrutado por aliados, antagonistas, uma reviravolta marcante e monstros gigantes prontos para te rasgarem ao meio.
Às vezes, jogar com as cartas que conhecemos é o melhor a se fazer – e Matthews tem plena ciência disso. O diretor pega algumas páginas emprestadas da bíblia de Joseph Campbell e transforma as divindades inalcançáveis e os guerreiros partidários em seres monumentais que o enxergam como um pedaço de carne e em uma dupla hilária formada por Michael Rooker e Ariana Greenblatt como Clyde e Minnow. Todavia, os arquétipos de obras clássicas (sejam literárias ou cinematográficas) ganham uma camada interessante e bastante contemporânea, que não perde suas linhas nostálgicas à medida que cultiva reflexões originais e envolventes. Não é surpresa que cada um dos personagens carregue consigo uma backstory fúnebre, repleta de perdas infelizes e de um prospecto que os abrigou a amadurecer antes do tempo ou diferente do que esperavam. Clyde perdeu o filho; Minnow, seu pai; Joel, por sua vez, foi o único a escapar de uma batida de carro, observando impotente seus pais serem esmagados impiedosamente.
É com essas breves explicações que a imagética rom-com ganha um evocativo flerte com as tragédias familiares, sem perder mão do fio condutor que une cada um dos atos. E, enquanto o afiado roteiro mostra-se como um dos melhores dos últimos anos, seja por seu ritmo, seja pelo equilíbrio de seus diálogos, é notável a preocupação estética da equipe artística em acrescentar elementos sutis e práticos ao caminho percorrido pelo personagem principal. A vibrante paleta de cores da redescoberta do mundo por Joel se transforma numa obscura realização de que tudo o que ele conhece ainda permanece ali, mas agora está tomado pelo perigo e pela inospitalidade, culminando em uma sóbria reflexão de que o melhor caminho é seguir em frente. Mesmo o previsível embate final entre ele e seus algozes – e sua reunião com Aimee – é acompanhado de uma organização técnica soberba.
Emergindo como uma interessante análise sobre paixão e coragem, ‘Amor e Monstros’ revitaliza o gênero pós-apocalíptico assim como seus conterrâneos supracitados fizeram algum tempo atrás. Convidativo e fascinante do começo ao fim, é impossível desviar o olhar das cativantes performances e da explosiva química de seu elenco – e não torcer para que, de alguma forma, tudo dê certo no final.