domingo , 22 dezembro , 2024

Crítica | Ela Disse – Grande concorrente ao Oscar mostra os bastidores do início do MeToo

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Obras sobre bastidores jornalísticos podem ser tediosas ou completamente envolventes, Ela disse (She Said), da alemã Maria Schrader, encontra-se no segundo time. 

O roteiro de Rebecca Lenkiewicz (Desobediência) é baseado no livro Ela Disse – Os bastidores da reportagem que impulsionou o MeToo, lançado em 2019, das jornalistas norte-americanas Jodi Kantor e Megan Twohey, vividas respectivamente por Zoe Kazan e Carey Mulligan. Com intensidade, emoção e precisão, Maria Schrader (da minissérie Nada Ortodoxa) percorre os obstáculos de um dos maiores escândalos de assédio e abuso de poder da última década. 



Os primeiros minutos de narrativa nos apresentam a adrenalina das jornalistas Jodi e Megan no seu ambiente de trabalho. Não apenas na redação do New York Times, mas em contato com suas fontes, ao telefone, preparando um jantar em meio ao turbilhão de denúncias de assédio contra Donald Trump às vésperas das eleições de 2016. Como todos sabemos, o caso caiu por terra, Trump saiu vitorioso e as acusadoras foram repugnantemente ameaçadas. 

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Com essa premissa, o roteiro nos coloca na perspectiva de frustração das jornalistas em lidar com suas fontes, não poder lhes garantir segurança e lutar pela verdade ameaçada constantemente pelo poder, seja econômico, de influência ou de força. Alguns meses passam, a gravidez de Megan Twohey avança, ela tem o bebê, entra em licença maternidade, enquanto Jodi Kantor segue pistas sobre casos de assédios sexuais silenciados através de acordos no ambiente de trabalho. 

A partir do anúncio do lançamento de um livro autobiográfico da atriz ítalo-americana Rose McGowan (voz de Keilly McQuail), Jodi enxerga uma direção para sua pesquisa : a indústria cinematográfica. Ela Disse consegue expor o esforço detalhado da investigação e os questionamentos pertinentes por trás de cada passo. Ou seja, Hollywood entra como um trunfo midiático de denunciar o que todas as mulheres enfrentam no mercado de trabalho. 

Na companhia das reais responsáveis por essa odisseia, o roteiro permite-se ser didático, do ponto de vista jornalístico, ao mesmo tempo que intimista  — ao colocar a subjetividade das profissionais em evidência —, e ainda instigante por nos estimular a saber como as duas vão conseguir superar todos os muros a sua volta. Assim, a partir de alguns indícios, a história começa a ganhar corpo, alma e coração. 

Embora Ela Disse apoia-se em grande parte no rendimento das protagonistas Zoe Kazan e Carey Mulligan, existe um time de profissionais excelentes para fazer a história evoluir como um suspense jornalístico, tal como Jennifer Ehle e Andre Braugher. Mesmo conhecendo os resultados da história, o roteiro de Rebecca Lenkiewicz é uma jornada do herói, não em busca de desvendar um mistério, mas como fazer o “mistério” vir a público e ser punido. 

Graças às experiências em trazer para as telas narrativas femininas fortes e intimistas, tais como o ganhador do Oscar Ida (2013), Desobediência (2017), e Colette (2018), Rebecca Lenkiewicz tempera perfeitamente os momentos de embate e a determinação das protagonistas. Todas as conversas entre as duas são naturalmente bem pontuadas e estimulam à reflexão do processo jornalístico: pesquisar, checar informações e convencer fontes a falar abertamente. 

Como a trama desenvolve-se através de relatos, as escolhas de edição por vezes entregam uma estética bonita e humanitária, mas por outras recorre ao simples flashback. Em uma das narrações, a câmera percorre corredores vazios de um hotel, enquanto escutamos um áudio real de uma discussão incomoda entre Harvey Weinstein e um das jovens a prestar queixa ao seu agente. 

Se o nome Weinstein aparece apenas ao final deste texto não é por acaso. Este é um filme sobre o que elas disseram  — as vítimas, sendo silenciadas por medo e dinheiro durante anos — e não sobre o acusado em si. Com maestria, Ela Disse deixa evidente que não é um filme sobre Harvey Weinstein, mesmo ele sendo o predador sexual chave da investigação. Apesar de ter o seu direito de resposta, ele nem tem rosto em cena.

Forte candidato ao Oscar 2023 nas principais categorias, Ela Disse pode ser comparado com os brilhantes Spotlight – Segredos Revelados (2015), de Tom McCarthy, e Todos os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula, como filmes inspirados pelo trabalho jornalístico investigativo, com apoio de uma mídia financeiramente estável e preocupada com o valor social da pauta. Em outras palavras, haja investimento do New York Times para ter duas jornalistas  —  e algumas outras mãos  —  dedicadas por meses em apenas uma reportagem, além de viagens e horas extras.

Além de contar os bastidores da engrenagem de um dos movimentos mais importantes do século XXI, Ela Disse apresenta cenas catárticas e de beleza cinematográfica. Uma ocorre quando Zoe Kazan recebe o telefonema final de Ashley Judd (interpretando ela mesma), só este momento vale indicações a prêmios por transmitir uma verdadeira descarga de tensão e alívio amplificada em cada frame. Outra sucede no enquadramento de todos os redatores e editores envolvidos relendo juntos a última versão da matéria.

Os tempos do jornalismo são outros, as máquinas não precisam parar para imprimir uma derradeira declaração, porém atos heroicos ainda podem ser feitos através da imprensa. Embora, agora, a gente finalize com um “enter” no teclado, os efeitos são enormes e ainda mais retumbantes no mundo globalizado. 

Ela Disse foi lançado mundialmente em 13 de outubro no Festival de Filme de Nova Iorque. O título chega aos cinemas brasileiros dia 8 de dezembro de 2022. Visto em Paris, em 23 de novembro de 2022.

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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O roteiro de Rebecca Lenkiewicz (Desobediência) é baseado no livro Ela Disse – Os bastidores da reportagem que impulsionou o MeToo, lançado em 2019, das jornalistas norte-americanas Jodi Kantor e Megan Twohey, vividas respectivamente por Zoe Kazan e Carey Mulligan. Com intensidade, emoção e precisão, Maria Schrader (da minissérie Nada Ortodoxa) percorre os obstáculos de um dos maiores escândalos de assédio e abuso de poder da última década. 

Os primeiros minutos de narrativa nos apresentam a adrenalina das jornalistas Jodi e Megan no seu ambiente de trabalho. Não apenas na redação do New York Times, mas em contato com suas fontes, ao telefone, preparando um jantar em meio ao turbilhão de denúncias de assédio contra Donald Trump às vésperas das eleições de 2016. Como todos sabemos, o caso caiu por terra, Trump saiu vitorioso e as acusadoras foram repugnantemente ameaçadas. 

Com essa premissa, o roteiro nos coloca na perspectiva de frustração das jornalistas em lidar com suas fontes, não poder lhes garantir segurança e lutar pela verdade ameaçada constantemente pelo poder, seja econômico, de influência ou de força. Alguns meses passam, a gravidez de Megan Twohey avança, ela tem o bebê, entra em licença maternidade, enquanto Jodi Kantor segue pistas sobre casos de assédios sexuais silenciados através de acordos no ambiente de trabalho. 

A partir do anúncio do lançamento de um livro autobiográfico da atriz ítalo-americana Rose McGowan (voz de Keilly McQuail), Jodi enxerga uma direção para sua pesquisa : a indústria cinematográfica. Ela Disse consegue expor o esforço detalhado da investigação e os questionamentos pertinentes por trás de cada passo. Ou seja, Hollywood entra como um trunfo midiático de denunciar o que todas as mulheres enfrentam no mercado de trabalho. 

Na companhia das reais responsáveis por essa odisseia, o roteiro permite-se ser didático, do ponto de vista jornalístico, ao mesmo tempo que intimista  — ao colocar a subjetividade das profissionais em evidência —, e ainda instigante por nos estimular a saber como as duas vão conseguir superar todos os muros a sua volta. Assim, a partir de alguns indícios, a história começa a ganhar corpo, alma e coração. 

Embora Ela Disse apoia-se em grande parte no rendimento das protagonistas Zoe Kazan e Carey Mulligan, existe um time de profissionais excelentes para fazer a história evoluir como um suspense jornalístico, tal como Jennifer Ehle e Andre Braugher. Mesmo conhecendo os resultados da história, o roteiro de Rebecca Lenkiewicz é uma jornada do herói, não em busca de desvendar um mistério, mas como fazer o “mistério” vir a público e ser punido. 

Graças às experiências em trazer para as telas narrativas femininas fortes e intimistas, tais como o ganhador do Oscar Ida (2013), Desobediência (2017), e Colette (2018), Rebecca Lenkiewicz tempera perfeitamente os momentos de embate e a determinação das protagonistas. Todas as conversas entre as duas são naturalmente bem pontuadas e estimulam à reflexão do processo jornalístico: pesquisar, checar informações e convencer fontes a falar abertamente. 

Como a trama desenvolve-se através de relatos, as escolhas de edição por vezes entregam uma estética bonita e humanitária, mas por outras recorre ao simples flashback. Em uma das narrações, a câmera percorre corredores vazios de um hotel, enquanto escutamos um áudio real de uma discussão incomoda entre Harvey Weinstein e um das jovens a prestar queixa ao seu agente. 

Se o nome Weinstein aparece apenas ao final deste texto não é por acaso. Este é um filme sobre o que elas disseram  — as vítimas, sendo silenciadas por medo e dinheiro durante anos — e não sobre o acusado em si. Com maestria, Ela Disse deixa evidente que não é um filme sobre Harvey Weinstein, mesmo ele sendo o predador sexual chave da investigação. Apesar de ter o seu direito de resposta, ele nem tem rosto em cena.

Forte candidato ao Oscar 2023 nas principais categorias, Ela Disse pode ser comparado com os brilhantes Spotlight – Segredos Revelados (2015), de Tom McCarthy, e Todos os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula, como filmes inspirados pelo trabalho jornalístico investigativo, com apoio de uma mídia financeiramente estável e preocupada com o valor social da pauta. Em outras palavras, haja investimento do New York Times para ter duas jornalistas  —  e algumas outras mãos  —  dedicadas por meses em apenas uma reportagem, além de viagens e horas extras.

Além de contar os bastidores da engrenagem de um dos movimentos mais importantes do século XXI, Ela Disse apresenta cenas catárticas e de beleza cinematográfica. Uma ocorre quando Zoe Kazan recebe o telefonema final de Ashley Judd (interpretando ela mesma), só este momento vale indicações a prêmios por transmitir uma verdadeira descarga de tensão e alívio amplificada em cada frame. Outra sucede no enquadramento de todos os redatores e editores envolvidos relendo juntos a última versão da matéria.

Os tempos do jornalismo são outros, as máquinas não precisam parar para imprimir uma derradeira declaração, porém atos heroicos ainda podem ser feitos através da imprensa. Embora, agora, a gente finalize com um “enter” no teclado, os efeitos são enormes e ainda mais retumbantes no mundo globalizado. 

Ela Disse foi lançado mundialmente em 13 de outubro no Festival de Filme de Nova Iorque. O título chega aos cinemas brasileiros dia 8 de dezembro de 2022. Visto em Paris, em 23 de novembro de 2022.

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Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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