Madonna alcançou uma fama incontestável já nos primeiros anos de sua carreira. Logo após o lançamento de seu début homônimo, o público e os produtores musicais perceberam que a jovem cantora nascida em Bay City tinha muito a oferecer. Não é surpresa que, poucos anos depois de sua estreia, a cantora tenha entregado o melhor álbum de sua carreira, ‘Like a Prayer’, e se tornado um grande ícone LGBT+ conforme discursava em prol da comunidade numa época em que tabus insurgiam a torto e a direito – principalmente durante o surto da epidemia de AIDS que colocou o grupo em questão numa marginalidade ainda maior.
Foi pensando nisso, em colaboração com as críticas que recebia por seu aparente “calculismo” para compor as músicas, que Madonna aventurou-se em uma nova perspectiva, dando-nos o ótimo ‘Erotica’. Seu quinto álbum de estúdio, logo na primeira track, soa muito diferente de suas investidas anteriores e opta por uma atmosfera mais obscura e mais sensual, conversando diretamente com o título supracitado. Unindo elementos do dance e do disco-pop dentro de um escopo que passa de longe de ser datado. É claro que, numa perspectiva mais generalizada, a obra em questão não esbarra nem perto das revoluções causadas por sua investida de 1989, mas não perde brilho em momento algum – nem mesmo com os perceptíveis deslizes.
A faixa de abertura homônima dá vida ao primeiro de muitos alter-egos abraçados pela artista, Dita, inspirada na atriz Dita Parlo. A personagem é um símbolo sexual até hoje relembrado por todos e revisto das mais diversas formas, e rende-se aos apelos sexuais que, à época, ganhavam uma triste inabilidade. “Erótico, erótico, coloque suas mãos no meu corpo” repete-se em um cíclico e envolvente refrão, servindo como respaldo para a construção das outras canções. É surpreendente ver de que forma, mesmo com a presença de certas entregas confessionais, o tom passivo-agressivo impera com força e mostra que a cantora não está aqui para seguir o fluxo, e sim reinventar a si mesma.
“Deeper, Deeper” encontra um patamar deliciosamente nostálgico. O ano é 1992; Madonna prende-se com força nas décadas de 1970 e 1980, mostrando sua paixão pelas discotecas através do teclado, dos sutis sintetizadores em terceiro plano e uma voz que, apesar de declamar um poema romântico, faz menções ao karmas da vida, caindo “mais fundo, mais fundo e mais fundo”. Ela também encontra elementos do R&B em “Where Life Begins” por breves segundos antes de recuperar o tom conhecido das faixas anteriores, instantaneamente chamando nossa atenção. As lyrics conseguem ser ainda mais explícitas que “Erotica” em um cinismo sexual muito bem estruturado e transforma o eu-lírico em uma dona de casa dominatrix matriarcal que foge de todos os convencionalismos possíveis.
A lead singer retorna a devanear em baladas desconstruídas como “Bad Girl”, em que não pensa duas vezes antes de discriminar seus erros, dizendo com todas as palavras que estava “bêbada às seis, beijando os lábios de um estranho” para se esquecer de uma decepção amorosa que drena toda sua felicidade. Todavia, Madonna, tomando as rédeas da produção e da composição de quase todas as faixas, deseja criar aventuras épicas que se estendem ao longo de cinco e seis minutos; não é surpresa que, em dado momento, cansemos dessa longevidade e sejamos apenas movidos por inércia até determinada conclusão antes de esperar o início da próxima música.
Madonna também cultiva espaço mais que o suficiente para suas conhecidas rendições confessionais. “Rain”, por exemplo, utiliza de uma composição em puro crescendo movida por uma ecoante e épica bateria até explodir em um pedido para que a chuva “lave meu sofrimento e leve embora minha dor”. É incrível perceber como, diferente do otimista ‘True Blue’, lançado alguns anos antes, este álbum tenha como preferência a exploração de um ambiente menos idealizado, unindo sua estrutura interna com os eventos extra-musicais. Partindo disso, a cantora também investe em um tom mais acusativo com “Why’s It so Hard”, perguntando “o que eu devo fazer para ser respeitada?”, arquitetando um discurso de empatia para, principalmente, as minorias sociais – ganhando ainda mais respeito e reconhecimento entre os LGBT+.
Temos também uma interessante regravação no mais puro dance imaginável com “Fever”, utilizando, ao invés dos elementos do R&B de Little Willie John, acordes modernos de percussão aliados a pinceladas do hip-hop (como a clara presença do beatbox). Mesmo que não chegue no mesmo patamar da original, tal construção conversa com a mesma Madonna que se apresentou ao mundo quase uma década atrás, fazendo questão de mencionar a si mesma em uma autoaceitação incrível. Essa escolha também dá as caras em “Bye Bye Baby” no momento em que sua voz é travestida com uma camada afetada e mais robotizada – perdendo um pouco de originalidade por reciclar instrumentais de entradas anteriores.
A conclusão do álbum é diferente de qualquer coisa apresentada: as três camadas musicais de “Secret Garden”, delimitadas pelo ponto de encontro entre o piano clássico, o baixo e a percussão repetitiva, talvez venha como contradição para premeditar sua próxima obra fonográfica. De qualquer forma, a track é acompanhável durante os dois primeiros minutos, mergulhando numa monotonia esquecível conforme se aproxima do final.
‘Erotica’ pode não ter o mesmo peso revolucionário que a produção anterior, mas é extremamente original em diversos sentidos. O disco funciona como uma declaração de independência para o mundo, trazendo Madonna no centro de um desabafo emocional que se estende ao longo de catorze longas faixas. Os equívocos podem até ganhar uma expressiva voz; porém, perdem força e são ofuscados por uma sexy e dançante confissão musical.
Nota por faixa:
- Erotica – 5/5
- Fever – 4/5
- Bye Bye Baby – 4/5
- Deeper and Deeper – 5/5
- Where Life Begins – 4/5
- Bad Girl – 3,5/5
- Waiting – 4,5/5
- Thief of Hearts – 3/5
- Words – 4/5
- Rain – 4,5/5
- Why’s It so Hard – 4/5
- In This Life – 3,5/5
- Did You Do It? – 2/5
- Secret Garden – 2,5/5