Até em seus piores dias, seus agudos ecoam pelo ambiente como notas poderosas e afinadas. A aspereza de sua voz denota um tempo novo em sua jornada, alimenta anseios que talvez jamais se cumpram em sua vida e a lembra da mais pura harmonia que um dia encheu estádios inteiros ao redor do mundo. Mas mesmo diante de todas essas limitações – físicas e vocais, Céline Dion nunca foi tão palpável e poderosa como a vemos em seu documentário. Com seu canto mais “fraco” – e ainda assim melhor que maioria dos artistas em seus dias bons -, a canadense finalmente abre as cortinas de sua ampla casa e nos convida para uma passeio pelos átrios de seus cômodos e pelo âmago de sua alma. Destemida e corajosa por expor aquilo que mais lhe persegue aos 56 anos, ela faz de Eu Sou: Céline Dion uma carta aberta ao público e um convite à sua fragilidade.
Rodado de maneira mais crua e um tanto livre, o longa dirigido pela indicada ao Oscar Irene Taylor não se atém à linhas temporais, não se preocupa em marcar as datas e percorre suas quase duas horas com recortes de performances emblemáticas, em contraste com a dura realidade de um presente mais cinza, marcado por espasmos, convulsões difíceis de serem assistidas enquanto audiência e momentos de solidão. Mas muito mais do que a sombra que acompanha Céline, a produção nos lembra da força e voracidade em querer viver que a cantora e atriz sempre possuiu. Exaltando seu senso de humor que nunca lhe abandona, mesmo quando as lágrimas embaçam sua vista, Eu Sou: Céline Dion é um testamento da mulher que ela sempre foi, mas que tão poucas vezes vimos diante dos nossos olhos.
Deixando Céline como fenômeno musical de lado, somos apresentados à Céline Marie Claudette Dion, a mais jovem de 14 irmãos, nascida em uma família regida pelo amor à música. E ao longo dessa 1h42 de filme, a potência de seus shows se contrapõe à simplicidade de uma vida menos glamourosa, sem vestidos cintilantes e suntuosos, sem tailleurs bordados e com nenhuma maquiagem no rosto. De cara limpa, cabelos presos e uma larga camisa branca que lhe veste perfeitamente, ela abre o quadro inicial como alguém que precisa desabafar e não está mais disposta a manter as mesmas e evasivas justificativas para o seu sumiço.
Sempre com um senso de dever e responsabilidade perante o público, ela conduz a câmera com um pesado sentimento de culpa e frustração. Mas incansável e disposta a cumprir sua promessa de emocionar multidões com sua bela voz, ela não desiste. E é disso que Eu Sou: Céline Dion é feito: de uma coragem inebriante, de uma fé inabalável e de uma alegria retumbante que cruza as dores nas juntas, os pés exaustos e as olheiras nascidas de um cansaço mais mental do que físico. E como uma audiência em completo estado de alerta, navegamos por águas agitadas, passeamos por uma montanha-russa emocional e somos tomados por sua dor, nos sentindo parte dela ao testemunharmos tudo de forma tão visceral e brutal.
E Taylor acerta em cheio ao deixar que Céline apenas viva, enquanto a câmera lhe acompanha. Sem o compromisso de conduzir entrevistas bem editadas e pré-montadas, ela apenas permite que o documentário flua à sua maneira, seguindo o grau de honestidade tão almejado pela artista. E assim, viajamos no tempo. Relembramos seu amado esposo René Angélil, vemos seus filhos crescerem e brincarem com ela, enquanto testemunhamos o seu caminho diante de um diagnóstico tão severo, que é a Síndrome da Pessoa Rígida. Com notas agridoces e um sentimento de profunda gratidão, Eu Sou: Céline Dion ainda consegue ser uma celebração à vida e às poderosas letras das baladas tão belamente compostas pela cantora. Se encerrando com um grito de esperança, que mais soa como um cântico corajoso de uma mulher obstinada, o novo documentário da Prime Video é uma emocionante catarse, que traz Céline encontrando sua voz, à medida em que luta para resgatar o seu canto.