Seguindo os chocantes eventos da temporada passada, a 2ª temporada de ‘Expresso do Amanhã’ não apenas tinha inúmeras respostas a responder, mas também algumas pontas soltas para aparar. Afinal, o ciclo de estreia deixou de lado as principais críticas antropológicas dos quadrinhos e da aclamada adaptação de Bong Joon-ho para transformar uma pirâmide social em uma mercadológica história de assassinato e mistério que chegou a nenhum lugar. Felizmente, a atuação do elenco protagonista – em especial de Daveed Diggs e Jennifer Connelly -, conseguiu ofuscar parte considerável dos deslizes e nos manter fiéis ao cenário pós-apocalíptico até o aguardado retorno do verdadeiro Sr. Wilford, criador da extensa máquina que contém os últimos humanos vivos do planeta.
Os novos episódios da série são, em suma, infinitamente melhores que os da iteração predecessora, não apenas pela solidez da narrativa principal, mas pelo bom uso do necessário choque que analisa as tensões entre classes sociais e as mazelas do capitalismo predatório – além de abrir discussões sobre autoritarismo, despotismo e fascismo. Tudo é canalizado para a figura central de Joseph Wilford, interpretado pelo sempre impecável Sean Bean. Anos depois de ter estreado em ‘Game of Thrones’ como Ned Stark, apostando em um lado mais heroico de sua carreira, Bean encarnou o psicótico criador do Snowpiercer com precisão cirúrgica, causando no público um ódio ressentido que apenas crescia, capítulo após capítulo. Mais do que isso, o ator construiu uma personalidade tóxica e passiva-agressiva que nunca o colocava como o errado das situações, mas sim apenas alguém que jogava lenha na fogueira e observava, plácido, tudo se desmoronar em chamas.
Agora atados ao Big Alice, o trem de suprimentos que, eventualmente, cruzou caminho com a locomotiva principal, os habitantes do éden mecânico perceberam que os dias de paz estavam longe de alcançar estabilidade. André (Diggs), lutando para impedir o caos de se instaurar e unindo-se a Melanie (Connelly), ainda que com um pé atrás, percebeu que algo se escondia na escuridão e que segredos não revelados poderiam colocar em xeque tudo o que ele e os Fundistas batalharam para conquistar – ou seja, uma condição de vida a par da primeira e segunda classes. Criando um desgaste entre aqueles que não queriam sair da zona de conforto, ele recorreu à antigos inimigos e forjou uma aliança forte que, por certo tempo, funcionou – ao menos até Wilford dar sua cartada final e retomar o controle do trem.
De certa forma, os showrunners Josh Friedman e Graeme Manson perceberam os equívocos cometidos anteriormente e investiram mais esforços em um elenco de peso e em personagens multifacetados cujas traumáticas histórias parecem explicar com clareza cada uma das reviravoltas apresentadas. A trama mais envolvente, a princípio, restringe-se ao conturbado relacionamento de “mãe e filha” entre Melanie e Alex (Rowan Blanchard). Melanie abandonou a jovem em prol de salvar os últimos resquícios de vida da Terra, acreditando tê-la sentenciado a uma trágica morte; mas o destino acaba brincando com ela e traz a filha de volta em um momento de pura angústia – no final, despedindo-se dela mais uma vez para garantir que haja um futuro fora do trem.
Em outro espectro, as irreverências narrativas ganham forma em uma polaridade política que estende-se para cada um dos 1034 vagões do Snowpiercer. De um lado, André consegue angariar seguidores destemidos e ambiciosos o bastante para apoiá-lo; de outro, Wilford, posando como um demagogo, reacende a chama de um tempo mais sombrio e mais segregativo para conquistar o povo através de promessas vazias, enxergando-os como presa e utilizando uma elegância invejável e um carisma arbitrário para mostrar “quem é o verdadeiro dono”. Ele também usa as profundas feridas que implicou na Srta. Audrey (Lena Hall), proprietária e regente do vagão-leito, a seu favor, levando-a de volta para um tóxico e abusivo relacionamento.
De fato, a personagem mais bem construída é a de Ruth Wardell. Interpretada pela impactante presença de Alison Wright, a ex-substituta de Melanie começou como uma impiedosa subserviente das leis promulgadas por Wilford e, após testemunhar a crueldade do homem que considerava uma divindade, transformou-se em uma rebelde e se manteve firme em uma justa moral, aliando-se a Layton e sendo banida para a compostagem do Big Alice (chegando até mesmo a assassinar um dos guardas para retomar o controle da locomotiva principal e salvar Melanie, que migrou para uma das instalações externas para coletar dados sobre a atmosfera terrestre). A rendição de Wright, que toma conta dos holofotes com força inenarrável, mergulha em uma arquitetura de altos e baixos que apenas adicionam mais camadas a uma apaixonante e controversa personalidade.
Enquanto o roteiro mostra-se mais coeso e mais imperativo quando comparado aos capítulos iniciais, a direção também demonstra mais afeto pelo intimismo e pela teatralidade dramática, mesmo resvalando nas costumeiras construções campo-contracampo das produções estadunidenses. Nada é ousado o bastante para criar uma nova modalidade televisiva, mas também não se inclina com demérito às cansativas fórmulas, fornecendo, assim, um competente retrato da caótica barbárie e da agridoce paz.
A nova temporada de ‘Expresso do Amanhã’ acerta com precisão tanto nas questões críticas quanto nas técnicas, aprendendo com os erros de um passado não tão longínquo e promovendo uma exploração mais incisiva dessa épica distopia. Já renovada para um terceiro ciclo, podemos apenas imaginar o que nos aguarda no futuro – e numa possível conclusão da série.