sexta-feira, abril 19, 2024

Crítica | Ficção científica e drama familiar se unem no instigante ‘Black Box’

O subconsciente sempre se caracterizou como um emblemático fascínio do ser humano – tanto que, até hoje, não sabemos exatamente o que se esconde por trás de nossas introspecções. Ao longo da história, artistas das mais diversas vertentes buscaram explicar o pensamento dos indivíduos, fosse com o onirismo da estética surrealista, os fluxos de consciência imprimidos por Clarice Lispector e José Saramago e até mesmo os futuros distópicos cinematográficos que imprimiam críticas acerca desses estudos ambiciosos e sem limites. Partindo desse princípio, surgiu ‘Black Box’ – a segunda produção da interessante, ainda que controversa antologia de terror arquitetada pela Amazon e pela Blumhouse (um dos maiores e mais aclamados estúdios da atualidade).

O especial do mês de outubro, que celebra de forma instigante o Dia das Bruxas – se afastando dos convencionalismos gore ou slasher que tanto transbordam nessa época do ano -, começou com o pé esquerdo com o esquecível suspense ‘The Lie’, estrelado por Joey King e Peter Sarsgaard. Confesso que, apesar da qualidade estética, o roteiro rendeu-se a tantas fórmulas que poderíamos fazer uma rodada de bingo para cada clichê trazido às cenas e não me deixou animado para os próximos capítulos. Entretanto, ‘Black Box’ veio como uma surpresa agradável e uma competente narrativa de amor incondicional – mais até do que a obra anterior. No cenário que se ergue à nossa frente, Mamoudou Athie dá uma ótima performance como Wright Nolan, um jovem fotógrafo que sofreu um acidente e entrou em morte cerebral. Miraculosamente, ele volta à vida com uma grave amnésia, não se recordando de seu tempo com a filha, Ava (Amanda Christie), e da esposa que faleceu na tragédia em questão.

Após tentar recuperar o cotidiano, forçando-se a voltar à normalidade, mas esquecendo-se de coisas como pegar a filha na escola ou das pessoas com quem trabalhava, ele decide visitar a Dra. Miranda Brooks (Charmaine Bingwa), chefe do departamento neurológico que utiliza métodos fora do convencional para reativar memórias escondidas nos confins da mente, como a hipnose. Vê-se, aqui, que o enredo arquitetado por Stephen Herman e supervisionada também pelo diretor Emmanuel Osei-Kuffour Jr. pega temas emprestados de outras iterações audiovisuais que se tornaram famosas e aclamadas nos últimos, como o vencedor do Oscar ‘Corra!’, de Jordan Peele, que mesclava a hipnose com um potente terror psicológico; entretanto, seguindo os passos de ‘The Lie’, o filme em questão abre espaço para outras discussões que variam desde identidade até a reconstrução de uma família marcada pelo trauma.

Osei-Kuffour não tem qualquer intenção de construir uma tragédia grega ou de se respaldar em melodramas novelescos e previsíveis – mesmo que, com atenção máxima, possamos entender o que nos aguarda no último ato. Na verdade, o cineasta toma seu tempo para construir arcos comoventes e relacionáveis com o público, colocando os laços entre Nolan e Ava no centro de uma corrida por aquilo que foi perdido. Nolan deseja mais que tudo que volte a ser o pai que outrora era, mas ao mesmo tempo se vê num impasse: ele consegue acessar sua zona de conforto quando hipnotizado; porém, ele é atacado por uma força incompreensível que o persegue e que, de alguma forma, quer destruí-lo. É aí que se centra o plot principal: quem é essa criação psíquica que atormenta seus pesadelos? Um lado sombrio que não conhece? Ou algo mais derradeiro que voltou com ele do mundo dos mortos?

Em nenhum momento o roteiro dá a entender que lidaremos com o sobrenatural, mas sim com uma metafísica exploração do que significa “existir”. O protagonista, encarnado com perfeição e com profundidade por Athie, não sabe quem é e não sabe se o passado que lhe contam é verdadeiro: em diversos momentos, ele se questiona sobre comportamentos explosivos e tóxicos que podem ter a ver com alucinações que incluem uma mulher sem rosto (provavelmente sua esposa) cheia de machucados e um bebê esperneando, inconsolável. Ao mesmo tempo, Nolan também fica se perguntando o motivo do cenário onde se vê não fazer parte de sua história – afinal, certas sequências são ambientadas em um apartamento no subúrbio no qual nunca viveu. À medida que essas questões se acumulam em uma bola de neve, Herman espera o momento certo para nos entregar uma reviravolta sólida o bastante para fugir do lugar-comum.

O aspecto taciturno é alcançado não apenas pela tétrica trilha sonora – que se vale de instrumentos de corda ressonantes e certas incursões com o minimalismo do piano -, como também pela monocromática paleta de cores que, inteligentemente, não muda as próprias cores, mas aposta em filtros moduladores e supressão de brilho para modificar a ambientação. A claustrofobia, que seria de ímpar necessidade para convencer os espectadores de que as coisas não são tão simples quanto parecem, é auxiliada por sutis enquadramentos em plongée e contra-plongée – além de frames com cenários opressores pela própria trama em que estão mergulhados.

Não deixe de assistir:

‘Black Box’ insurge como um coeso conto que traz discussões válidas para as telas, ainda que não se aprofunde como poderia e encontre alguns problemas rítmicos ao longo do caminho, cumpre o que promete e não se mostra pedante ou superficial.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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