A finitude da vida em meio à escassez se transforma em poesia nos primeiros cinco minutos de Furiosa: Uma Saga Mad Max. Com rápidas pinceladas sobre a destruição do planeta Terra, a partir de crises ambientais e humanas, George Miller abre seu mais novo épico distópico ao som de um narrador ancião e profético, que reflete sobre a condição da humanidade diante de sua autodestruição. Em um deserto sombrio e simbólico, o pouco que resta vira pó. E agora, nessa nova pseudo civilização, surge a distópica heroína homônima.
De rosto delicado, infantil e em uma terra fértil, ela logo se tornará apenas uma sombria lembrança da idílica e reclusa vida que nutriu em sua pequena comunidade. E então, seu presente vira passado e seu futuro se dilacera em uma longínqua extensão desértica, dominada por fúria, remanescentes de combustível fóssil e buscas frenéticas pelo domínio da oferta e da escassez – ambos cercados por formações rochosas robustas e desfiladeiros que revelam cenas de ação que nos enchem os olhos das mesmas memórias de Mad Max: Estrada da Fúria.
Mas Furiosa: Uma Saga Mad Max é diferente. Em sua magnitude, é menor, menos densa na quantidade de seus personagens e em números de veículos arquitetônicos e megalomaníacos. Mas ainda assim, é um filme poderoso. Resgatando as origens da personagem inicialmente vivida por Charlize Theron, a pré-sequência de Miller nos introduz aos vestígios iniciais desse novo e perverso mundo cão, tomado por areia e devastação. Mas ao invés de também nos tomar pelas mãos em direção aos meandros de como esse universo se fundiu e se ergueu, o aclamado diretor opta por nos apresentar apenas fragmentos dessa realidade, que aqui é trazida às telas como estando em seus estágios mais primitivos e não tão desenvolvidos.
E ainda que essa lacuna deixe um gostinho amargo naqueles que esperavam também testemunhar as raízes da fundação de Wasteland, a verdade é que isso pouco afeta a nossa experiência enquanto audiência. Furiosa nada mais é do que a história de ascensão de uma garotinha tratada como mercadoria, que fez de suas terríveis circunstâncias seu impulso de sobrevivência em um mundo onde mulheres nada mais são que ventres férteis e seios fartos de leite.
Fazendo conexões valiosas com pontos chave de Estrada da Fúria, o mais novo longa da franquia sabe muito bem vincular ambas as narrativas, aparando arestas soltas propositalmente apresentadas lá em 2015, à medida em que busca fechar um ciclo na história de uma personagem que quase superou o sucesso do protagonista original – graças à excelente parceria Miller-Theron. E dessa vez sob a belíssima performance de Anya Taylor-Joy, Furiosa: Uma Saga Mad Max ganha novas camadas de profundidade, em um thriller apocalíptico de origem que nos envolve em suas quase três horas de duração.
Dividindo a trama em capítulos, Miller se empenha para honrar o universo expansivo que criou, buscando um equilíbrio em seu ritmo narrativo principalmente nos momentos de maior lentidão – que podem ser mais exaustivos para os impacientes. Mas com Anya dominando a tela com uma performance soturna, densa e absolutamente concentrada em seus olhos, o cineasta pouco precisa se preocupar. Aqui, a popular e talentosa atriz uma vez mais mostra que todo seu sucesso não é por menos, tornando o constante silêncio que domina as telas em uma atmosfera ainda mais profunda para testemunharmos sua versatilidade em tela.
E Chris Hemsworth não fica atrás, usando a oportunidade dada pelo diretor para apresentar uma versão mais séria de sua performance. Contando com um ótimo trabalho de maquiagem realizado pela vencedora do Oscar, Lesley Vanderwalt, ele caminha em direção a papeis mais sérios e complexos, provando que tem potencial para encarar desafios mais dramáticos em tela. Com um vilão mais caricato e levemente cômico, ele é um contraste com a atmosfera quase mórbida que envolve Wasteland. Caótico e verborrágico, ele é a quebra dos silêncios e uma breve ruptura certeira no pesado ritmo narrativo estabelecido por Miller.
Estampando uma fotografia estonteante que reitera os detalhes do preciso design de produção de Colin Gibson, a pré-sequência de Estrada da Fúria é visceral em suas cenas de ação e perseguição, ainda que elas sejam menos robustas que as do clássico contemporâneo de 2015. Poderoso em sua execução e nos embalando em uma catártica e sinestésica jornada de vingança e identidade, Furiosa: Uma Saga Mad Max é uma belíssima epopeia distópica com ares mitológicos. E ainda que não supere a maestria e o fascínio originais de seu antecessor, sem sombra de dúvidas já se torna uma das melhores experiências cinematográficas de 2024.