quinta-feira , 21 novembro , 2024

Crítica | Good Omens – O fim do mundo nunca foi tão divertido e absurdo

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Como sobreviver ao apocalipse (porque ainda vamos rir muito quando tudo acabar)

Os britânicos tem um humor peculiar. E adorável. Daqueles que mistura o inusitado com o ridículo, o completo nonsense e, claro, um senso de auto crítica agudo e cortante. Qualidades muito raras no humor feito no Brasil, talvez por isso ele não seja tão popular aqui. Faltam-nos essas qualidades, preferimos rir do outro que rirmos de nós mesmos, e na terra da rainha, reconhecer a essência falha meio que faz parte de ser… bom, britânico.

DO QUE SE TRATA

Good Omens – livro que, no Brasil, ganhou o titulo de “Belas Maldições” – carrega no sarcasmo ao levantar uma questão essencial: O que define o bem e o mal?



Será a bondade ou a maldade, elemento intrínseco ao ser humano? Ou construções morais definidas pelo ambiente que nos cerca e pelas escolhas que fazemos? Como um Saramago em “Caim“, Neil Gaiman usa os temas bíblicos, assim como os temas morais que fundamentam a religião cristã, como forma de discutir o que define as crenças que direcionam essas nossas escolhas. O anjo Aziraphale (Michael Sheen) e o demonio Crawley… ou melhor, Crowley (David Tennant, maravilhoso) formaram uma relação de cumplicidade (que se confunde nos mais variados níveis) que nasceu ainda no começo dos tempos, no fatídico dia em que Eva deu aquela dentada no fruto proibido (instigada por Crowlay).

Anjo e demônio, desde o florescer da civilização, caminham entre nós – e eles adoram viver por aqui, só Deus sabe porque – agindo, interferindo, algumas vezes um anulando o trabalho do outro mas, na maior parte das vezes, um colaborando com o outro, ainda que os dos lados estejam vivendo uma espécie de de guerra fria, que espera pela sua crise dos mísseis em Cuba (no caso, o Apocalipse) para pegarem em armas e recomeçar a batalha campal entre céu e inferno. A humanidade que inunda os dois personagens, que adoram os pequenos prazeres que aproveitamos – ter um belo carro, comer crepes em Paris, ter um porre de vinho falando mal do trabalho – é também a zona cinza a justificar que tudo em demasia, ou pureza, não acaba bem.

COMO COMEÇA

Enquanto céu e Inferno radicalizam suas posições ao alimentar a guerra entre eles quando não desafiam o “Grande Plano” – e tudo que Deus planeja (e não explica pra ninguém) coisas como o grande dilúvio, a morte de Cristo e, mais recentemente, o apocalipse – nossos heróis, primeiro questionam, para então, subverter as regras, leis e profecias, ainda que pelos bastidores. E não poderia ser mais providencial quando colocar o próprio Anticristo, ainda bebê, no lugar correto vira incumbência de Crowley. Mas, no melhor estilo das comédias de erros, em vez de levar o filho do capiroto para uma influente família americana, ele acaba com um pacato casal de uma cidadezinha nas proximidades de Londres.

A dupla acaba acompanhando, por 11 anos, a criança errada, influenciando a, cada qual do seu lado, na esperança dele crescer e se tornar um jovem equilibrado, com tendências para os dois lados, na pior das hipóteses, normal.

Uma vez descoberto o engano, começa uma corrida para encontrar o garoto certo a fim de evitar que ele encontre os quatro cavaleiros do apocalipse e dê partida no Armagedon.

Paralelamente a tudo isso, acompanhamos os jovens Anathema Device (Adria Arjona) e Newton Pulsifer (Jack Whitehall), a herdeira de uma antiga linhagem de bruxas e um atrapalhado aspirante a engenheiro da computação, herdeiro da linhagem de matadores de bruxa que as caçavam. Anathema teve sua vida inteira moldada pelo livro de profecias escrito por sua mais notável ancestral, Agnes Nutter (Josie Lawrence), a última – e verdadeira – bruxa a ser queimada, na Inglaterra. O livro é um verdadeiro manual com todo tipo de profecia, coisas bem específicas, que vão de que horas uma pessoa vai chegar em um local, até dicas de investimento sugerindo não comprar Betamax. Seu destino é impedir o fim do mundo, e no processo, os caminhos dela se cruzam com os de Pulsifer, uma vez a Nemesis da sua família, agora, aliado.

Por fim, alheio ao seu destino, o enviado das trevas Adam Young (Sam Taylor Buck) segue se divertindo com seus amigos, Brian (Ilan Galkoff), Pepper (Amma Ris), Wensleydale (Alfie Taylor) e, mais tarde, o fofo cão de guarda de Adam (sabe o cachorrão preto que sempre aparece pra cuidar da cria do tinhoso? Pois é…). Mas o destino é inevitável e o “Grande Plano” uma vez colocado em movimento, precisa ir até o fim.

O RIDÍCULO, O INUSITADO, O NONSENSE…

Como disse no começo, como um bom produto de humor britânico, a serie abusa do inesperado, do ridículo e do nonsense, numa espiral de eventos sem qualquer aparente ligação, conectados por informações avulsas, que soam espertas mas, que no fim da contas se não nos fazem sentir espertos por capturar alguma graça de sua aleatoriedade boba, nos deixa confusos por não entender essa ligação. De uma forma ou de outra, somos feitos de bobos. E isso não é ruim, tanto que acabamos rindo de nossa própria estupidez. Esse papel de ligação vem de ninguém menos que Deus. Ou melhor, a voz de Deus, papel que ficou com a vencedora do Oscar, Frances McDormand.

É engenhoso colocar uma mulher no papel do todo poderoso – de fato, Hollywood tem, já há algum tempo, brincado com o sexo dos anjos, como quando vimos Tilda Swinton como Gabriel em Constantine (2005), e aqui, os arcanjos Miguel e Uriel são interpretados por mulheres – e Frances dá o tom e a gravidade corretos à essencial função de narrador dentro desse estilo que mistura cinismo, sarcasmo com um certo encantamento e esperança. Uma narração agridoce, que encontra ecos em outro exemplar da literatura britânica que também ganhou as telas: “O Guia do Mochileiro das Galáxias“. De fato, não é difícil se conectar com outros produtos da ficção inglesa uma vez que bebe, frequentemente, dessas fontes.

O contínuo jogo de trocadilhos e provérbios, de fazer piada da desgraça, a mistura do contemporâneo com o cafona, ou mesmo com elementos que parecem criados por crianças (afinal, o Anticristo é uma criança ainda) tem muito da aparente inocência de um “Dr Who” por exemplo (poxa, tem até o David Tennant surtando na tela!).

Aproveitando que falo de Deus, falemos um pouco do céu e inferno, duas representações distintas da ideia de ambiente de trabalho (não à toa, referidas constantemente como “Administração”). Enquanto o céu parece um daqueles prédios envidraçados tão limpos, claros e brancos que até doem na vista, o inferno é a literal representação de uma repartição pública, recriada pela produção da Tv Pirata da Globo, saída, diretamente, do inicio dos anos 90. Não passa despercebido ainda a escolha de certos papéis para certos cargos. Num elenco quase completamente formado de atores britânicos, colocar o americano Jon “Don Draper” Hamm na posição de Gabriel (todo trabalhado no fitness e numa arrogância miguxa), soa como uma provocação.

Não é pra menos, os americanos, e tudo que se refere aos EUA, é motivo de piada. É o ridículo, ou o ridicularizável, até mesmo, o profano. Esses “espaços de trabalho”, as relações internas, a forma displicente de lidar com a burocracia que envolve, como desencarnar (um perigo morrer por acidente!), até mesmo, o fato de o local onde – e os meios pelos quais – deve começar o apocalipse, ser uma base americana na Inglaterra (espaço americano em solo britânico) é uma forma de apontar o dedo para o outro lado do Atlântico. Sutil e escancarado, ao mesmo tempo. Bem britânico.

O inferno já trabalha mais a típica apatia e inépcia do trabalhador inglês médio, uma massa trabalhadora formada por tipos bem definidos que ficaram famosos em séries como “The Office” (lembra que a série nasceu lá?) e “The It Crowd“. Lá, encontramos, por exemplo, Belzebu (Anna Maxwell Martin), a chefe de departamento carrasaca e mal humorada, que deve morar num apartamento com algumas plantas mortas e um gato gordo, uma série de diabinhos com a mesma cara (Paul Adeyefa) pra mostrar o desprezo com a função dos estagiários (que sempre se lascam e pagam o pato), mas o destaque fica por conta do demônio Hastur, que o que tem de violento, asqueroso e virulento, tem de estúpido.

Diga-se, a estupidez é lei entre os seres não terrenos. Eles estão tão imersos em seguir o “Grande Plano”, o que está determinado, apenas para satisfazer seu desejo de guerra, que ignoram a complexidade humana. Assim, falham, são enganados, perdem coisas… com frequência.

… E A AUTO CRITICA.

Aqui entra o ponto mais importante do que citei lá no início. É divertido rir do ridículo, do inusitado, da corrente inconsistência do nonsense, mas, mais do que isso, é bom rir de si, da sua própria ignorância. A crítica a essas instituições, a qualidade falha delas mas, principalmente, das pessoas que insistem em mantê-las, em acreditar nelas. A auto crítica é a joia da coroa aqui, como em toda boa comédia britânica. Temos criticas evidentes, como a passagem de cenas bíblicas em que o demônio condena as ações cruéis de Deus contra os homens, assim como ele mostra que alguns dos momentos mais violentos da humanidade nem ele, nem qualquer outro demônio nada teve a ver com o fato – foi tudo obra da imaginação dos próprios humanos.

Subversões de temas como freiras satanistas, anjos que abusam de frivolidades e luxuria enquanto outras pessoas ao redor sofrem com a realidade do mundo, passando por situações mais sutis, como a relação fraterna entre os anjos que disfarça clássicas situações de um casamento. Até mesmo o alívio cômico (como se a série precisasse de mais um – no caso, eles formam o núcleo dos momentos “pastelão” da história) formado pela dupla Michael McKean e Miranda Richardosn (tão bom revê-la!) como Shadwell, um espécie de bêbado-louco-conspiracionista-oportunista, e Madame Tracy, a vizinha que se divide entre ocultista e dama de companhia. Juntos ilustram a atual classe baixa inglesa, já na terceira idade, que vive de subempregos ou trambiques, e vem se multiplicando pelo país. Eles são muito mais esteriótipos que arquétipos, mas funcionam e divertem.

Na parte técnica, a estética farsesca já começa na abertura que exibe uma animação em cortes de papel, imprimindo um tom lúdico e sarcástico. Os efeitos especiais, ainda que bem executados, também não tem uma preocupação grande em soarem reais. Muita coisa prefere, na verdade, reforçar o aspecto teatral, seja de tragédia, seja de comédia, que a trama desenvolve quando coloca o mundo como “o palco” de tudo. Na trilha, muito, mas muito Queen, pontuando cada movimento. Começamos com o demônio humanizado sendo apresentado a sua missão ao som de Bohemian Rhapsody. Segue com um acidente envolvendo uma bicicleta que recebe a justa trilha de “bicycle race“, a preocupação de um amigo com outro ao som de “you’re my best friend” ou quando Crowley se põe à guerra para salvar o mundo ao som de “we will rock you“.

POR FIM…

Se parece fazer falta pincelar algo sobre as demais religiões, é porque Neil Gaiman já extrapolou o que podia com Deuses Americanos (que rendeu outra boa série). Esta já oferece muitos temas para discussão dentro da teologia cristã.

A série é curta, 6 episódios, e uma das grandes qualidades de uma trama, relativamente, complexa, com múltiplas tramas e personagens, é não dar espaço para barrigas ou subtramas desnecessárias. A tentação para fazer uma nova temporada pode ser grande, e ainda que não haja grandes pontas soltas, foram deixadas migalhas para explorar, afinal, que tipo de mundo incrível, inesperado e imprevisto no “Grande Plano” pode surgir?

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DO QUE SE TRATA

Good Omens – livro que, no Brasil, ganhou o titulo de “Belas Maldições” – carrega no sarcasmo ao levantar uma questão essencial: O que define o bem e o mal?

Será a bondade ou a maldade, elemento intrínseco ao ser humano? Ou construções morais definidas pelo ambiente que nos cerca e pelas escolhas que fazemos? Como um Saramago em “Caim“, Neil Gaiman usa os temas bíblicos, assim como os temas morais que fundamentam a religião cristã, como forma de discutir o que define as crenças que direcionam essas nossas escolhas. O anjo Aziraphale (Michael Sheen) e o demonio Crawley… ou melhor, Crowley (David Tennant, maravilhoso) formaram uma relação de cumplicidade (que se confunde nos mais variados níveis) que nasceu ainda no começo dos tempos, no fatídico dia em que Eva deu aquela dentada no fruto proibido (instigada por Crowlay).

Anjo e demônio, desde o florescer da civilização, caminham entre nós – e eles adoram viver por aqui, só Deus sabe porque – agindo, interferindo, algumas vezes um anulando o trabalho do outro mas, na maior parte das vezes, um colaborando com o outro, ainda que os dos lados estejam vivendo uma espécie de de guerra fria, que espera pela sua crise dos mísseis em Cuba (no caso, o Apocalipse) para pegarem em armas e recomeçar a batalha campal entre céu e inferno. A humanidade que inunda os dois personagens, que adoram os pequenos prazeres que aproveitamos – ter um belo carro, comer crepes em Paris, ter um porre de vinho falando mal do trabalho – é também a zona cinza a justificar que tudo em demasia, ou pureza, não acaba bem.

COMO COMEÇA

Enquanto céu e Inferno radicalizam suas posições ao alimentar a guerra entre eles quando não desafiam o “Grande Plano” – e tudo que Deus planeja (e não explica pra ninguém) coisas como o grande dilúvio, a morte de Cristo e, mais recentemente, o apocalipse – nossos heróis, primeiro questionam, para então, subverter as regras, leis e profecias, ainda que pelos bastidores. E não poderia ser mais providencial quando colocar o próprio Anticristo, ainda bebê, no lugar correto vira incumbência de Crowley. Mas, no melhor estilo das comédias de erros, em vez de levar o filho do capiroto para uma influente família americana, ele acaba com um pacato casal de uma cidadezinha nas proximidades de Londres.

A dupla acaba acompanhando, por 11 anos, a criança errada, influenciando a, cada qual do seu lado, na esperança dele crescer e se tornar um jovem equilibrado, com tendências para os dois lados, na pior das hipóteses, normal.

Uma vez descoberto o engano, começa uma corrida para encontrar o garoto certo a fim de evitar que ele encontre os quatro cavaleiros do apocalipse e dê partida no Armagedon.

Paralelamente a tudo isso, acompanhamos os jovens Anathema Device (Adria Arjona) e Newton Pulsifer (Jack Whitehall), a herdeira de uma antiga linhagem de bruxas e um atrapalhado aspirante a engenheiro da computação, herdeiro da linhagem de matadores de bruxa que as caçavam. Anathema teve sua vida inteira moldada pelo livro de profecias escrito por sua mais notável ancestral, Agnes Nutter (Josie Lawrence), a última – e verdadeira – bruxa a ser queimada, na Inglaterra. O livro é um verdadeiro manual com todo tipo de profecia, coisas bem específicas, que vão de que horas uma pessoa vai chegar em um local, até dicas de investimento sugerindo não comprar Betamax. Seu destino é impedir o fim do mundo, e no processo, os caminhos dela se cruzam com os de Pulsifer, uma vez a Nemesis da sua família, agora, aliado.

Por fim, alheio ao seu destino, o enviado das trevas Adam Young (Sam Taylor Buck) segue se divertindo com seus amigos, Brian (Ilan Galkoff), Pepper (Amma Ris), Wensleydale (Alfie Taylor) e, mais tarde, o fofo cão de guarda de Adam (sabe o cachorrão preto que sempre aparece pra cuidar da cria do tinhoso? Pois é…). Mas o destino é inevitável e o “Grande Plano” uma vez colocado em movimento, precisa ir até o fim.

O RIDÍCULO, O INUSITADO, O NONSENSE…

Como disse no começo, como um bom produto de humor britânico, a serie abusa do inesperado, do ridículo e do nonsense, numa espiral de eventos sem qualquer aparente ligação, conectados por informações avulsas, que soam espertas mas, que no fim da contas se não nos fazem sentir espertos por capturar alguma graça de sua aleatoriedade boba, nos deixa confusos por não entender essa ligação. De uma forma ou de outra, somos feitos de bobos. E isso não é ruim, tanto que acabamos rindo de nossa própria estupidez. Esse papel de ligação vem de ninguém menos que Deus. Ou melhor, a voz de Deus, papel que ficou com a vencedora do Oscar, Frances McDormand.

É engenhoso colocar uma mulher no papel do todo poderoso – de fato, Hollywood tem, já há algum tempo, brincado com o sexo dos anjos, como quando vimos Tilda Swinton como Gabriel em Constantine (2005), e aqui, os arcanjos Miguel e Uriel são interpretados por mulheres – e Frances dá o tom e a gravidade corretos à essencial função de narrador dentro desse estilo que mistura cinismo, sarcasmo com um certo encantamento e esperança. Uma narração agridoce, que encontra ecos em outro exemplar da literatura britânica que também ganhou as telas: “O Guia do Mochileiro das Galáxias“. De fato, não é difícil se conectar com outros produtos da ficção inglesa uma vez que bebe, frequentemente, dessas fontes.

O contínuo jogo de trocadilhos e provérbios, de fazer piada da desgraça, a mistura do contemporâneo com o cafona, ou mesmo com elementos que parecem criados por crianças (afinal, o Anticristo é uma criança ainda) tem muito da aparente inocência de um “Dr Who” por exemplo (poxa, tem até o David Tennant surtando na tela!).

Aproveitando que falo de Deus, falemos um pouco do céu e inferno, duas representações distintas da ideia de ambiente de trabalho (não à toa, referidas constantemente como “Administração”). Enquanto o céu parece um daqueles prédios envidraçados tão limpos, claros e brancos que até doem na vista, o inferno é a literal representação de uma repartição pública, recriada pela produção da Tv Pirata da Globo, saída, diretamente, do inicio dos anos 90. Não passa despercebido ainda a escolha de certos papéis para certos cargos. Num elenco quase completamente formado de atores britânicos, colocar o americano Jon “Don Draper” Hamm na posição de Gabriel (todo trabalhado no fitness e numa arrogância miguxa), soa como uma provocação.

Não é pra menos, os americanos, e tudo que se refere aos EUA, é motivo de piada. É o ridículo, ou o ridicularizável, até mesmo, o profano. Esses “espaços de trabalho”, as relações internas, a forma displicente de lidar com a burocracia que envolve, como desencarnar (um perigo morrer por acidente!), até mesmo, o fato de o local onde – e os meios pelos quais – deve começar o apocalipse, ser uma base americana na Inglaterra (espaço americano em solo britânico) é uma forma de apontar o dedo para o outro lado do Atlântico. Sutil e escancarado, ao mesmo tempo. Bem britânico.

O inferno já trabalha mais a típica apatia e inépcia do trabalhador inglês médio, uma massa trabalhadora formada por tipos bem definidos que ficaram famosos em séries como “The Office” (lembra que a série nasceu lá?) e “The It Crowd“. Lá, encontramos, por exemplo, Belzebu (Anna Maxwell Martin), a chefe de departamento carrasaca e mal humorada, que deve morar num apartamento com algumas plantas mortas e um gato gordo, uma série de diabinhos com a mesma cara (Paul Adeyefa) pra mostrar o desprezo com a função dos estagiários (que sempre se lascam e pagam o pato), mas o destaque fica por conta do demônio Hastur, que o que tem de violento, asqueroso e virulento, tem de estúpido.

Diga-se, a estupidez é lei entre os seres não terrenos. Eles estão tão imersos em seguir o “Grande Plano”, o que está determinado, apenas para satisfazer seu desejo de guerra, que ignoram a complexidade humana. Assim, falham, são enganados, perdem coisas… com frequência.

… E A AUTO CRITICA.

Aqui entra o ponto mais importante do que citei lá no início. É divertido rir do ridículo, do inusitado, da corrente inconsistência do nonsense, mas, mais do que isso, é bom rir de si, da sua própria ignorância. A crítica a essas instituições, a qualidade falha delas mas, principalmente, das pessoas que insistem em mantê-las, em acreditar nelas. A auto crítica é a joia da coroa aqui, como em toda boa comédia britânica. Temos criticas evidentes, como a passagem de cenas bíblicas em que o demônio condena as ações cruéis de Deus contra os homens, assim como ele mostra que alguns dos momentos mais violentos da humanidade nem ele, nem qualquer outro demônio nada teve a ver com o fato – foi tudo obra da imaginação dos próprios humanos.

Subversões de temas como freiras satanistas, anjos que abusam de frivolidades e luxuria enquanto outras pessoas ao redor sofrem com a realidade do mundo, passando por situações mais sutis, como a relação fraterna entre os anjos que disfarça clássicas situações de um casamento. Até mesmo o alívio cômico (como se a série precisasse de mais um – no caso, eles formam o núcleo dos momentos “pastelão” da história) formado pela dupla Michael McKean e Miranda Richardosn (tão bom revê-la!) como Shadwell, um espécie de bêbado-louco-conspiracionista-oportunista, e Madame Tracy, a vizinha que se divide entre ocultista e dama de companhia. Juntos ilustram a atual classe baixa inglesa, já na terceira idade, que vive de subempregos ou trambiques, e vem se multiplicando pelo país. Eles são muito mais esteriótipos que arquétipos, mas funcionam e divertem.

Na parte técnica, a estética farsesca já começa na abertura que exibe uma animação em cortes de papel, imprimindo um tom lúdico e sarcástico. Os efeitos especiais, ainda que bem executados, também não tem uma preocupação grande em soarem reais. Muita coisa prefere, na verdade, reforçar o aspecto teatral, seja de tragédia, seja de comédia, que a trama desenvolve quando coloca o mundo como “o palco” de tudo. Na trilha, muito, mas muito Queen, pontuando cada movimento. Começamos com o demônio humanizado sendo apresentado a sua missão ao som de Bohemian Rhapsody. Segue com um acidente envolvendo uma bicicleta que recebe a justa trilha de “bicycle race“, a preocupação de um amigo com outro ao som de “you’re my best friend” ou quando Crowley se põe à guerra para salvar o mundo ao som de “we will rock you“.

POR FIM…

Se parece fazer falta pincelar algo sobre as demais religiões, é porque Neil Gaiman já extrapolou o que podia com Deuses Americanos (que rendeu outra boa série). Esta já oferece muitos temas para discussão dentro da teologia cristã.

A série é curta, 6 episódios, e uma das grandes qualidades de uma trama, relativamente, complexa, com múltiplas tramas e personagens, é não dar espaço para barrigas ou subtramas desnecessárias. A tentação para fazer uma nova temporada pode ser grande, e ainda que não haja grandes pontas soltas, foram deixadas migalhas para explorar, afinal, que tipo de mundo incrível, inesperado e imprevisto no “Grande Plano” pode surgir?

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