Todo jornalista, em algum momento da vida, já pensou em ser o famoso ‘repórter de guerra’. Existe algum prazer oculto na ideia de viver flertando com a morte. E como o grotesco atrai o ser humano, goste ou não, é quase inevitável embarcar nesse mundo das reportagens sem ao menos se questionar como seria a carreira se optasse por seguir os corpos e tragédias. O problema é que esse rumo não é para qualquer um. Se o jornalismo policial, que é algo mais próximo da realidade de todos, já toma muito de um ser humano, imagine o que estar rodeado por guerra, morte e falta de esperança o tempo inteiro pode causar na mente de uma pessoa?
Em tempos em que o jornalismo em sua essência é atacado diariamente por birrinhas políticas, independentemente do lado, o diretor Alex Garland traz aos cinemas do mundo todo Guerra Civil, uma distopia que aborda o conceito das revoluções e dos confrontos políticos para um cenário que não costuma estampar os noticiários: a suposta ‘Terra da Liberdade’.
Para quem não conhece o diretor, ele começou como romancista e escreveu o sucesso ‘A Praia‘, que viria a ser adaptado para os cinemas no filme homônimo de Danny Boyle. Depois disso, ele adentrou os cinemas como roteirista e produtor, mas seu grande destaque mesmo foi a estreia na direção com o espetacular Ex_Machina: Instinto Artificial (2014). Nessa ficção científica brilhante, ele brinca o tempo inteiro com um estagiário sonhador que é contratado pelo Steve Jobs daquele universo para trabalhar com ele em uma base isolada, onde conduzirão um experimento secreto. Por lá, ele descobre que terá de lidar com uma inteligência artificial antropomórfica, vivida pela belíssima Alicia Vikander. O problema é que ela começa a questionar sua existência e papel no mundo, e acaba despertando a paixão do garoto. A partir daí, o diretor trabalha com maestria os desafios éticos da situação e o terror psicológico da dúvida que acerca o protagonista. Para completar, ele conduz o “Jobs” de uma forma irritantemente excêntrica, elevando a pressão em cima do garoto. É um filme que não explora muito além das paredes do confinamento, mas se desenvolve em cima justamente desses três personagens complexos. É fascinante.
Em Guerra Civil, Garland repete essa estrutura de se apoiar nos mistérios e na imprevisibilidade de seus personagens para contar uma história muito comum nas distopias, que tanto fizeram sucesso na última década, com o ‘porém’ de trazer um realismo intenso para a trama. A história gira em torno de Lee (Kirsten Dunst) uma premiada fotógrafa de guerra, o jornalista Joe (Wagner Moura), Sammy (Stephen Henderson) um experiente repórter do que sobrou do The New York Times, e Jessie (Cailee Spaeny), uma jovem aspirante a fotojornalista que se vê diante de sua referência profissional e decide extrair ao máximo dela. Esse quarteto de idades tão distintas embarca em uma viagem de carro pelos EUA para chegar a Washington para tentar entrevistar o presidente dos Estados Unidos antes que a facção rebelde tome o controle do país e dê fim a essa guerra civil.
O filme é trabalhado sempre em duas escalas. Uma mais geral, que explora a riqueza e bizarrices desses EUA em estado de sítio, e outro mais intimista, que geralmente se concentra no desenvolvimento dos personagens dentro do carro ou em situações de aprendizado. Porque mesmo que Lee hesite em levar a Jessie na viagem, elas acabam desenvolvendo uma relação meio professoral entre alguém que foi devorada pela profissão e está diante de uma versão sua ainda não destruída pelos sonhos laborais de típicos de uma iniciante. É interessante ver como Lee, que vive ‘protegida’ pela típica casca exigida pela profissão para que os fotojornalistas não enlouqueçam, passa o tempo inteiro praticamente implorando para que a Jessie não siga por esse caminho – e isso é possível graças a uma atuação sensacional de Kirsten Dunst, que aposta em uma atuação muito física -, mas não consegue deixar de orientar e se animar, mesmo que timidamente, pela incomum situação de estar acompanhada por essa menina de 20 e poucos anos.
O filme depende muito de Lee e sua frieza em relação ao caos, mas ganha demais com o talento e carisma de Joe. Wagner Moura segue um fenômeno, agora em inglês. Ele é um jornalista cuja vida o levou a adotar o “ânimo” como sua “casca” para as desgraças. Então, enquanto Lee é muito sóbria e séria, Joe é elétrico. Ele flerta, bebe e abusa da adrenalina para se manter vivo pela intensidade da profissão. Muitas vezes, o trabalho de Wagner é usado como alívio cômico em meio a tantas tragédias. Isso funciona muito bem e contrasta com a serenidade de outro membro desse núcleo: Sammy. O jornalista que se recusa a abraçar a aposentadoria é o respingo de sanidade que restou nesse mundo caótico. Ao mesmo tempo que ele é a voz da experiência, sua limitação física o transforma também em um bebê gigante, porque ele demanda cuidados em uma viagem como essa. É impossível não simpatizar com mais um trabalho fora de série de Henderson.
Mas o grande destaque do filme é a jovem Cailee Spaeny. A atriz de 25 anos já havia dado um show em Priscilla (2023) e repete a qualidade da atuação em Guerra Civil. Sua Jessie é a representação perfeita do jovem empolgado com o jornalismo. Nesse caso, o fotojornalismo. Ela é tímida, mas ousada e está seduzida pela adrenalina de caminhar nesse limiar entre a vida e a morte, enquanto tenta aprender com sua referência profissional. Ela ganha uma chance de ouro para fazer sua carreira e vai abraçá-la com toda força. É instigante acompanhar a jornada da menina enquanto ela experimenta as emoções da cobertura de guerra.
Cega pela adrenalina, ela entra em meio a protestos, tiroteios e emoções, sem se preocupar com seu próprio futuro. E convenhamos que é complicado pensar em outra coisa enquanto a bala está comendo a centímetros de distância. Nessa jornada pela profissão, ela decide focar em conseguir as fotos, fazendo dela uma grande descuidada. E para quem vive o jornalismo sabe o quanto isso é comum. A menina é praticamente uma estagiária deslumbrada pela emoção da tragédia, com o diferencial de estar no meio de uma das maiores guerras da história. A personagem certamente vai dialogar com os jornalistas e fotojornalistas que forem ver o filme, porque certamente eles conheceram alguém que foi ou já foram uma ‘Jessie’ em algum momento. A primeira vez que ela tem de lidar com um corpo é retratada de forma tão crua e contrasta com a frieza de Lee. É realmente sensacional. Mais do que isso, sua aura jovial e com vergonha de se mostrar empolgada certamente vai falar com o público em geral.
Além dos personagens, Alex Garland trabalha muito bem a forma como essa guerra afetou os EUA. É irônico como a perspectiva ocidental vive com confrontos intensos constantes, mas ainda assim tem quem enxergue uma ‘guerra civil’ como algo distante. É comum, por uma visão preconceituosa e até mesmo imperialista, que parte do público pense imediatamente nos conflitos do Oriente Médio. Por isso, o diretor aproveita para mostrar que até mesmo seu vizinho pode ser um agente de confronto, esperando apenas a oportunidade para descontar suas frustrações e preconceitos no próximo. Há duas passagens que ilustram bem isso. Uma em uma casa abandonada, que é simplesmente de tirar o fôlego, e outra na já clássica sequência estrelada por Jesse Plemons.
E não dá para falar sobre esse filme sem tecer todos os elogios possíveis aos trabalhos de edição e mixagem de som. Guerra Civil é um longa sensorial que apela para uma variedade fascinante de sons e ruídos para compor não apenas a viagem pelo país em queda, mas a tensão e a adrenalina das aventuras profissionais do quarteto. Por isso, caso tenha a oportunidade de assisti-lo em uma sala de cinema com melhores recursos de áudio, escolha ela. Você se sente no meio dos tiroteios, no meio da guerra. E há momentos em que Garland brinca com o papel da imprensa associando aos ativistas. Em especial, uma troca de tiros entre militares e rebeldes em que o som dos tiros é sincronizado aos sons do obturador da câmera enquanto as fotógrafas trabalham.
Nesses tempos de ataques a jornalistas, Guerra Civil é um espetáculo sensorial que beira o necessário, satirizando o fanatismo da polarização e envolvendo o espectador com uma trama tensa, instigante e de tirar o fôlego. É uma produção fantástica sobre o terror das distopias diárias que assolam o mundo e que acabaram sendo normalizadas.