terça-feira, março 19, 2024

Crítica | Inflexões intimistas fazem de ‘Só’ um dos melhores álbuns de Adriana Calcanhotto

Em diversas entrevistas para promover ‘Só’, a lendária musicista Adriana Calcanhotto comentou sobre surtos de criatividade que teve em plena pandemia do novo coronavírus COVID-19. Apesar de ter levado uma década completa para terminar sua trilogia marítima (com o último capítulo, ‘Margem’, sendo lançado em 2019), a estreia surpresa de seu 12º álbum de estúdio insurgiu de modo urgente – o que poderia premeditar uma produção crua demais para honrar seu legado. Felizmente, nossas expectativas para essa íntima e crítica incursão musical foram atendidas para além do esperado, com as “reflexões de quarentena” mesclando diversos estilos em uma profusão explosiva cujo único pecado é sua brevidade. A obra, no final das contas, mostra o que a artista tem de melhor: manter-se original e sem escrúpulos para que divulgue suas mensagens para quem esteja disposto a ouvi-las.

Calcanhotto já não precisa provar nada para ninguém. Suas irretocáveis rendições vocais são conhecidas seja no escopo adulto, seja no infantil (como não recordar da série de álbuns infantis que assinou sob a alcunha de Adriana Partimpim?). Aqui, a meio-soprano lírico volta sua personalidade para elegíacos versos que puxam elementos do MPB e da bossa-nova, é claro, mas mergulhando-os no cenário contemporâneo do samba e do funk moderno, criando uma amálgama única que funciona do começo ao fim. Retomando a colaboração com o icônico Arthur Nogueira e com a presença de Dennis DJ para a oitava faixa, fica claro que a performer nunca deixa de lado simbologias ambíguas, fazendo questão de imprimir uma construção que tangencia um parnasianismo desconstruído e buscando uma releitura de tudo que já nos foi apresentado.

Enquanto os estilos dos quais se dispôs desde 1990 poderiam se render à óbvia datação, Adriana é sagaz ao impedir que isso aconteça. Logo de cara, os furtivos batuques pavimentam o profundo caminho de “Ninguém na Rua”, flertando com a melancolia do isolamento e da solidão – nem mesmo a luz da lua ousa sair em tempos de crise. Ao longe, o espectro envolvente é pincelado com investidas do electro-funk, que poderiam ter um protagonismo maior. O lirismo convida os ouvintes a meditar da janela de nossos quartos sobre um tempo que por enquanto não irá voltar – e talvez nunca volte, levando em conta que a própria dinâmica social foi colocada em xeque. E, se a track inicial já vem à tona com estrondo, “Era Só” mantém o altíssimo nível ao ser arquitetada com a sutileza pungente do piano em primeiro plano e do violino e da bateria auxiliando na saudosista e taciturna ambientação.

A cantora exibe sua paixão pelo samba diversas vezes: em “Eu Vi Você Sambar”, as estrofes alternam entre aliterações e assonâncias retumbantes, mascaradas pelos acordes da guitarra, do inesperado saxofone e por uma entrega extremamente pura. O arranjo foge das fórmulas e faz com que o múltiplo experimentalismo funcione de cabo a rabo, saindo de um extremo comedido e reverberando em uma dançante análise sobre alguém que, outrora afável à farra e a levar “a vida na flauta” e que, agora, tornou-se uma sonhadora inveterada, transmutando as familiares declarações de amor para um platonismo amargurado que dialoga com as gerações atuais com força descomunal. Já em “Sol Quadrado”, a irônica melodia volta-se para as raízes do gênero supracitado – e, tradicional que seja (inclusive pela presença do coro da roda de samba), a lacônica música é funcional naquilo que deseja ser.

Apesar deste álbum ser, de fato, uma pesquisa sobre o distanciamento social autoimposto em meio a uma aflição mundial, algumas escolhas parecem precisas e redundantes demais – principalmente quando levamos em conta o teor poético das músicas. Seja em “O Que Temos”, seja em “Tive Notícias”, a repetição substantiva soa como um ruído por não permanecer fiel ao que nos vinha sendo apresentado desde o princípio; ainda assim, a fluida permeabilidade ofusca esses deslizes ao transitar de um sentimental retrato sonoro para uma agridoce e trágica balada, ambas guiadas pela atuação inenarrável de Calcanhotto.

A artista não deixa de lado seu acabrunhamento em praticamente nenhum momento do breve álbum. Seja com a mercadológica e vibrante “Lembrando da Estrada” – que, sem dúvida, é uma das melhores iterações de sua carreira -, seja com a fortuita “Bunda Le Lê” – apesar das boas intenções, uma fragmentada produção quando colocada ao lado de suas antecessoras -, ela prova que está pronta para fazer o que bem entender. Já “Corre o Munda” é o desfecho perfeito e necessário para uma obra deste calibre, perscrutado com um solilóquio romântico e que faz alusões a Fernando Pessoa sobre Coimbra, cidade portuguesa para a qual retornaria antes da pandemia, discorrendo sobre o caudaloso rio Mondego e sua vivência naquele país europeu.

Não deixe de assistir:

Adriana Calcanhotto nunca nos decepciona – e ‘Só’ é prova de sua versatilidade musical e de como sempre está a par do que acontece. Além disso, a performer é um dos poucos nomes da indústria musical brasileira que utiliza sua voz para denunciar, através de críticas cruciantes, cada coisa errada que vê da janela de seu quarto.

Nota:

  • Ninguém Na Rua – 5/5
  • Era Só – 5/5
  • Eu Vi Você Sambar – 5/5
  • O Que Temos – 4/5
  • Sol Quadrado – 4/5
  • Tive Notícias – 4,5/5
  • Lembrando da Estrada – 5/5
  • Bunda Le Lê – 3/5
  • Corre o Munda – 5/5

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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