Em se tratando de espionagem, o gênero exala virilidade pelos poros nos cinemas e na televisão. O arquétipo de herói urbano e o de vilões políticos sociais são comumente os mesmos. Como um formato já considerado tradicional, as expectativas da audiência em relação às produções seguem essa tipologia: Herói másculo, belo e cheio de sensualidade. Vilões com complexos psicológicos e comportamentos quase suicidas. Mas em tempos de #MeToo e #SeeHer, eis que o quadro muda, tornando esse universo tão sempre preto no branco em um contexto com diversos tons mais coloridos, com cores de pele distintas, raças das mais diversas e curvas femininas como as protagonistas. Nessa nova contemporaneidade, figuras como James Bond abrem espaço para Eve Polastri, a miscigenada ex-agente do MI5 que não vai descansar até encurralar a sádica assassina de aluguel Villanelle, em Killing Eve.
Em se tratando de arregaçar as mangas e produzir bons conteúdos para a TV, a BBC é expert. Dona de série Segurança em Jogo – outro sucesso de público e crítica de 2018, ela opera como quem sabe qual coelho tirar da cartola. Adaptando a série de livros Codename Villanelle, de Luke Jennings, a produção da divisão BBC America conta com Phoebe Waller-Bridge como a criadora e showrunner, conduzindo como uma maestra essa hipnotizante saga de uma irreverente e unapologetic agente, que desajeitada e estabanada como é, faz de tudo para desvendar a mente criminosa da sua grande algoz, sempre um passo a frente, sempre uma morte a frente. Em Killing Eve, Sandra Oh assume o papel homônimo com facilidade, gerando um grau de empatia e identificação quase instantâneo.
Com seus cabelos cacheados frequentemente mal amarrados, Oh personifica Eve com astúcia. Com raciocínio rápido e passos largos em suas andanças por lugares como Berlim, Paris e Londres, a atriz entrega um lado totalmente diferente de sua atuação. Hipnotizada pelas motivações de serial killers mulheres, elas gasta seus dias mirabolando sobre o que leva ao comportamento psicopata nelas, que naturalmente motivam os estilos tão autênticos das mortes que protagonizam. De fala acelerada e olhar distrativo, a personagem é um banquete de maneirismos e identidade, que justificam com facilidade porque a atriz tem sido tão premiada por sua caracterização. Teimosia, obstinação e espírito independente e – quase – incoerente compõem uma das figuras mais complexas e completas da TV da atualidade, gerando alguém que é simplesmente um prazer conferir em cena. Aqui, Sandra Oh nos deixa embasbacados com sua linguagem corporal e uma atuação merecedora de todo o alvoroço que tem recebido.
Em contrapartida, Killing Eve não é só feita de sua protagonista. Talvez, um dos aspectos que mais fortaleça a complexidade da personagem seja justamente sua antagonista, interpretada com sagacidade e sangue nos olhos por Jodie Comer. Com sotaque arrastado, rosto angelical e comportamento demoníaco – tamanha sua psicopatia, ela é sádica, tem prazer na dor alheia e transita entre as expressões mais diversas, construindo camadas de personagens fictícios dentro de si, que a ajudam não apenas a operar as mortes viscerais e gráficas, como confundem a audiência o tempo todo.
E em uma espécie de briga de gato rato, a série é regida por mulheres, boas e más, assassinas e heroínas. Com o sexo masculino ficando ainda com papéis relevantes, mas posicionado mais às extremidades, a produção ainda conta com um roteiro que se desenvolve com tranquilidade, não procrastina no desenrolar dos fatos e não anda em círculos. Sabendo onde a trama precisa eclodir, Waller-Bridge desenha a narrativa mantendo os nervos à flor da pele, segurando a tensão nos momentos mais críticos e entregando clímaces que valem todo o sufoco de prender a respiração. Pontual, ela ainda traz leves pitadas de um humor mais ácido e irônico, geralmente vindo da própria Eve.
Com direção consistente e um final de temporada explosivo, Killiving Eve chega como mais um fôlego de frescor oriundo da TV contemporânea. Construindo um thriller forte e emponderado, a produção agrada gregos e troianos: aqueles que amam um bom suspense de espionagem e aquelas que sempre quiseram se ver representadas em papéis majoritariamente masculinizados. Estamos diante de uma nova era no entretenimento e, mais uma vez, este horizonte é tão promissor como nunca.